sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Livro dos Reis Magos: arte, comentários e resenha

Os três Reis prepararam-se pois para a viagem, desconhecendo cada um, como referimos, a empresa dos demais. Saíram dos seus reinos precedidos pela estrela, que se movia a par do séquito, avançando quando eles avançavam e parando quando eles paravam. E durante a noite, brilhando não como a Lua, mas como o Sol, iluminava-lhes todo o caminho (...)”1.

Assim inicia-se o Capítulo VIII de “O Livro dos Reis Magos” (Historia Trium Regum), atribuído a João de Hildesheim (Johannes von Hildesheim, em língua germânica), um monge carmelita alemão nascido entre 1310 e 1320 em Hildesheim, e falecido em 1375 em Marineu2. Pouco sabemos sobre sua vida. Entretanto, sua reputação como teólogo, orador, filósofo, poeta e historiógrafo foi reconhecida e comentada por autores, mesmo tempos depois de sua morte3.
Tendo estudado em Avignon, França, para onde fora com o diretor de sua ordem por volta de 1342, tornou-se doutor em Teologia e professor universitário. Em 1358 foi nomeado biblicus (professor de Teologia) em Paris, devido aos serviços prestados em Bourdeaux. Retornou a Alemanha tempos depois. Converteu-se em prior na cidade de Cassel. Sob esta dignidade eclesiástica seria enviado em missão à cidade de Roma, em 1366. Quando do seu retorno, foi nomeado prior do convento de Marineau, onde viria a falecer em 1375. Seus restos mortais repousam aí, num túmulo próximo ao do fundador do seu convento, Conde Glichen4.

“O autor, monge carmelita, era um homem de vasta cultura, alimentada por muitas viagens pela Europa (...)”5, e dentre suas obras localizamos textos apologéticos, polemistas, epistolares e homiléticos. Destaca-se entre estes a sua Historia Trium Regum (História dos Três Reis)6.

Composta entre 1364 e 1375, a obra é um dos textos mais celebrados da literatura medieval a tratar sobre o tema. Ao lado da “Legenda Áurea” (c. 1280-1290), de Jacopo de Varazze, que pode ter sido uma das fontes para o texto de Hildesheim7, a HTR* era (e a ainda o é) um livro de consulta obrigatória para os estudiosos dos magos evangélicos.
Embora as fontes de sua obra não sejam integralmente conhecidas, João afirma “(...) que tirou os dados e as informações de relatos de viagens à Terra Santa, sermões, relatos orais, anotando-os em um livrinho, sem revelar as fontes (...)”8. Livros supostamente advindos do “Oriente”, bem como material de sermões, homilias, observações e relações de outros, teriam sido consultados pelo autor9. Alguns estudiosos crêem que tais fontes “orientais” sejam mera ficção ou então obras citadas em textos lidos por ele.

Tendo sido traduzido para diversos idiomas, o texto de Hildesheim já podia ser lido em inglês, por exemplo, no início do séc. XV. O “The Three Kings of Cologne”, cuja edição de 1876 (reimpressa em 1988) de C. Horstmann pode ser acessada pela internet10, comprova a grande popularidade de que este texto gozava nos séculos XIV e XV. Vale mencionar que, além de uma introdução muito útil, Horstmann publicou vários manuscritos do texto, incluindo a versão latina e a versão inglesa, ambas, que segundo ele, não se tratariam da obra original de Hildesheim, outrossim, de compilações posteriores, distintas em vários pontos, com omissões e acréscimos, a começar pelas diferenças do título e da ordem dos capítulos, por exemplo.
É importante mencionar que, apesar do vasto número de manuscritos e impressos existentes deste texto, temos basicamente duas versões: uma, com um texto mais curto e simples, no qual as citações bíblicas são apenas mencionadas, de estilo simples e claro; outra, mais extensa, detalhada, de estilo feito por acumulações, repetições e rebuscamento11. É esta segunda versão que encontramos em grande parte dos manuscritos hoje conhecidos.
Uma versão simplificada e modernizada do escrito de Hildesheim foi publicada em 1914 por Frances Jenkins Olcott, “The Three Kings of Cologne: A legend of the Middle Ages by John of Hildesheim”, divida em três partes: The Star, The Child e How They Came to Cologne12 


A História dos Três Reis foi concebida num momento de apogeu das peregrinações em direção às relíquias dos magos, então sediadas na cidade de Colônia, Alemanha. Assim, o trabalho de Hildesheim encontra-se dentro de uma série de contos e registros de viajantes, leigos e missionários, que narravam a busca pelos magos no período medieval tardio13. Obras como “O livro das maravilhas: a descrição do mundo”, de Marco Polo, “Viagens de Jean de Mandeville”, do lendário Jean de Mandeville, e outras, dos sécs. XIII e XIV, marcam esta literatura de viajantes preocupada, em parte, em descobrir aspectos da vida, ação e lugar de origem dos três magos. A obra de Mandeville, assim como a de Hildesheim, apesar de serem (...) trabalhos de fantasia, mais do que de ciência, tinham algo novo sobre eles, de qualquer maneira (...)14.

Outra questão que desponta é a do “mago negro”. Apesar de textos antigos já fazerem referência à possibilidade de que um dos magos fosse africano, como o “Excerptiones Patrum, Collectanea et Flores et Diversis” ou “Collectanea et Flores”, séc. VIII, ou mesmo “As viagens de Jean de Mandeville”,  é na HTR de Hildesheim que se faz a primeira referência explícita ao “Mago Negro” ou “Rei Negro” vindo da Etiópia. Estes relatos exerceram forte influencia sobre as representações dos magos na arte ocidental na segunda metade do séc. XIV e no XV, de modo que não se encontra antes de 1360 exemplos de um Rei Negro na iconografia15. Para uma discussão mais aprofundada sobre este tópico a leitura do Cap. 1 da dissertação de doutorado em filosofia de C. J. Whitaker, “Blacks, Jews, and Race-Thinking in the Three Kings of Cologne”16, é de grande valor.
A edição de “O Livro dos Reis Magos” de 2004, publicado pela Lucerna, apesar de não apresentar-nos uma boa introdução crítica ou notas de rodapé, o que em muito dificulta a compreensão e localização histórica/historiográfica dessa magnífica obra medieval, possui uma boa tradução do texto e uma seleção iconográfica com mais de 40 obras de arte – incluindo um mosaico, relevos, manuscritos, pinturas, etc. A versão do texto apresentada é a mencionada segunda versão, de texto mais simples e acessível, mas, não menos rica e cativante. Como observa a estudiosa M. Félix, obras como “A Legenda Áurea”, de J. Varazze e, em especial a HTR de Hildesheim, foram essenciais para o surgimento do “ciclo dos magos” nas artes - sua saída do Oriente, aparição da Estrela, o encontro com Herodes, a adoração a Jesus, etc, uma vez que se tratam de “(...) duas histórias detalhadas desses santos personagens e passam a inspirar igualmente os artistas”17.

Assim, pinturas como Adoração dos Magos, 1423, de Gentile da Fabriano (Fig.1); O Encontro dos Magos, cerca de 1416, belíssima iluminura do Livro de Horas do duque de Berry, feita pelos irmãos Limburg (Fig.2); e a Adoração dos Magos, miniatura do séc. XIV, do Manuscrito Apocalispe, do Metropolitan Museum de Nova Iorque (Fig.3), estão ricamente impressas no livro.
Recentemente, o Manuscrito Peniarth 481D − escrito nos sécs. XIII e XIV em pergaminho, que traz em sua segunda parte uma versão em alemão da HTR, escrita e iluminada na cidade de Colônia − foi disponibilizado para consulta online no site da Biblioteca Nacional de Wales18, o que leva-nos a postular a atualidade e importância do estudo da História dos Três Reis, a opus magna de João de Hildesheim, que mesmo após mais de sete séculos de existência, não deixou de cativar e enriquecer o imaginário cristão.

Ficha técnica:

Autor: João de Hildesheim
Número de páginas: 174
ISBN: 97-288-350-35
Ano de publicação: 10/2004
Número de edição: 1 ed.
Idioma: Português (Portugal)
Encadernação: Cartonada com sobrecapa


Pode ser adquirido em: Wook, Principia e FNAC.


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Notas e Referências Bibliográficas:
* HTRHistoria Trium Regum
1. Conforme publicado em HILDESHEIM, J. O Livro dos Reis Magos/ trad. Leonor Lucerna Silbertin-Blanc. São João do Estoril, Portugal: Lucerna, 2004, p. 43.
2. Sobre a data de nascimento e falecimento de Hildesheim cf. Helmut von Jan: Johannes von Hildesheim. In: Neue Deutsche Biographie (NDB). Band 10, Duncker & Humblot, Berlim 1974, p. 554. Disponível em:                                                                      
http://daten.digitale-sammlungen.de/bsb00016327/image_570 .

3. SCHAER, F. (ed.) Philosophy. John of Hildesheim's The Mirror of the Source of Life. In The ORB: Online Reference Bok for Medieval Studies. Disponível em: http://www.the-orb.net/encyclop/culture/philos/fonsintro.html .
4. Cf. HORSTMANN, C. (ed.) The Three Kings of Cologne: An Early English Translation of the “Historia Trium Regum”. Millwood, Nova Iorque: Kraus Reprint, 1988, p. xiii. Disponível em:
http://quod.lib.umich.edu/cgi/t/text/text-idx?c=cme;idno=3KCol;rgn=div1;view=text;cc=cme;node=3KCol%3A2 .
5. HILDESHEIM, op. cit., p. 5.
6. Existem diferentes títulos nos mais de 100 manuscritos e impressos conhecidos, dos quais HTR é o mais conhecido. Cf. a nota 1 de HORSTMANN, op. cit., p. ix.
7. LANDAU, B. C. The Sages and the Star-Child: An Introduction to the Revelation of the Magi, An Ancient Christian Apocryphon. Dissertação de Doutorado. HDS - The Faculty of Harvard Divinity School. Cambridge, Massachusetts, 2008, p. 142. Disponível em:
http://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/609300/Revelation_of_the_Magi.pdf .
8. Ver em SILVA, A. M. F. Reis magos: história, arte, tradições: fontes e referências. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 2006, p. 21.
9. HORSTMANN, op. cit., p. xiv.
10. A edição de 1876 está disponível em: http://www.archive.org/details/threekingscolog00horsgoog ;                e a reimpressão de 1988 está disponível em: http://name.umdl.umich.edu/3KCol ;
11. HORSTMAN, op.cit., p. xi-xii.
12. Cf. OLCOTT, F. J. Good stories for great holidays: arranged for story-telling and reading aloud and for the children's own reading. 1 ed. Boston, Nova Iorque: Houghton Mifflin Company, The Riverside Press Cambridge, 1914, p. 355-362. Disponível em:
http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/OlcGood.html .
13. TREXLER, R. C. The journey of the Magi: meanings in history of a Christian story. New Jersey: Princeton University Press, 1997, p. 124. Disponível em: 
http://gigapedia.com/items:links?eid=QWusNfQduv2pAN8WFWuDjvJNxitlt4Llmozf%2BjK9NVM%3D .
14. Ibidem, p. 125.
15. Cf. TANER, M. Accompanying the Magi: closeness and distance in Late Medieval Central European Adorations of the Magi. Dissertação de Mestrado. CEU - Central European University. Budapeste, 2007, p. 19-22. Disponível em: http://www.etd.ceu.hu/2007/taner_melis.pdf .
16. WHITAKER, C. J. Race and Conversion in Late Medieval England. Dissertação de Doutorado. Duke University. Durham, Carolina do Norte, 2009, p. 22-70. Disponível em:
http://dukespace.lib.duke.edu/dspace/bitstream/handle/10161/1653/D_Whitaker_Cord_a_200912.pdf?sequence=1 .

17. PESSOA, J. M.; FÉLIX, M. As Viagens dos Reis Magos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p. 116-119.
18. O manuscrito pode ser consultado online em: http://www.llgc.org.uk/index.php?id=4432 .



quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

As Viagens dos Reis Magos: comentários e resenha

Em minhas pesquisas contínuas e sistemáticas sobre os Reis Magos, através dos caminhos do universo virtual de que a Internet é composta, deparei-me certa vez, em 2009, com o endereço da ABEU (Associação Brasileira das Editoras Universitárias)1 e com o livro “As Viagens dos Reis Magos”. Em função de certos impedimentos, só consegui adquiri-lo em julho de 2010.
Uma bela obra. Encadernada com uma negra capa dura, que traz em sua fronte uma cena da viagem dos magos guiados por um anjo, de uma imagem de um vitral medieval (data e local não identificados), o texto é fruto da co-autoria do antropólogo e teólogo Jadir de Morais Pessoa, autor de obras como Saberes em festa: gestos de ensinar e aprender na cultura popular, UCG, 2009; Meu senhor dono da casa: os 50 anos da folia de reis das Lages, Gráfica O Popular, 1993; e A igreja da denúncia e o silêncio do fiel, Editora Alínea, 1999, e da estudiosa francesa Madeleine Félix, formada em letras clássicas e autoridade mundial no estudo dos Reis Magos há várias décadas, autora do livro Le Livre des Rois Mages, Desclée de Brouwer, 2000.
Embora não tenham pretendido esgotar o assunto, os dois compuseram um texto bem completo, denso, fresco e muito rico, não somente do ponto de vista historiográfico, uma vez que tornam conhecidos do leitor uma série de documentos em potencial e pesquisadores do assunto, mas também teológico e artístico, visto que discutem as intenções da narrativa da Natividade em Mateus (Visita dos Magos) e Lucas (Adoração dos Pastores), e por terem exposto várias obras de arte (a saber, o Sarcófago da Natividade do séc. IV, as estátuas dos magos no Portal de São Lourenço, sécs. XV-XVI, na Catedral de Strasburgo, região da Alsácia, França, e outros)2.  
Como observa Jadir M. Pessoa na introdução, a pretensão do livro “(...) não é repor integralmente a investigação sobre essas grandes questões que há dois milênios inquietam devotos, religiosos e artistas, mas tomar essas três figuras, históricas ou lendárias, como três pessoas que se puseram a caminho”3.
Assim, os autores compreendem que estas viagens dos magos evangélicos poderiam ser estruturadas em sete momentos principais (não esperem uma explicação cabalística ou teológica para este número particular dos capítulos pois ela não existe, segundo afirma o próprio Jadir na introdução), e é em função disso que dividem os capítulos do texto:


“Os Três Reis E’vêm de Longe”: introdução a uma obra feita a inúmeras mãos (autoria de J.M. Pessoa)
1. A caminho de Belém (autoria de J.M. Pessoa)
2. De Constantinopla a Milão (autoria M. Félix) 
3. De Milão a Colônia (autoria M. Félix) 
4. De Colônia para a Europa ocidental medieval (autoria M. Félix) 
5. Na bagagem da catequese jesuítica (autoria de J.M. Pessoa)
6. Trilhando a diversidade cultural brasileira (autoria de J.M. Pessoa)
7. Os Três Reis de casa em casa (autoria de J.M. Pessoa)
Despedida da bandeira (autoria de J.M. Pessoa)
Referências
Sobre os autores .


Os autores “(...) constroem um belíssimo texto que nos faz aprender muito de religiosidade e de estética, em particular de epifania enquanto ‘aparição de Deus entre os homens’(...)”4, mas também apresentam-nos como as tradições ibéricas chegaram ao Brasil dando origem entre nós às Folias de Reis, registrando várias das belas letras dos cantos usados nos “giros” das Folias pelo Brasil afora.     


Ficha técnica:


Autor(es): Jadir de Morais Pessoa e Madeleine Félix
Categoria: Religião
Número de páginas: 256
Ano de publicação: 2007
Número de edição: 1 ed.
ISBN: 85-7103-370-6
Idioma: Português

Pode ser adquirido em: Editora Kelps

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Notas e Referências Bibliográficas:
1. Na época o endereço era http://www.abeu.org.br/detalhe_livro.php?id_livro=6183&id_editora=19, recentemente, ele foi alterado para http://www.abeu.org.br/farol/abeu/catalogo-unificado/item/puc-goias/as-viagens-dos-reis-magos/4199/ .
2.  As mencionadas obras de arte encontram-se, respectivamente, nas páginas 19 e 95 do livro.
3. PESSOA, Jadir de Morais; FÉLIX, Madeleine. As Viagens dos Reis Magos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p. 9.
4. Conferir a resenha de GUERRA, G.A.D. PESSOA, Jadir de Morais; FÉLIX, Madeleine. As viagens dos Reis Magos. Goiânia: Ed. da UCG, 2007. In Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 17, n. 11/12, p. 1127-1129, nov./dez. 2007. Disponível em:
http://seer.ucg.br/index.php/fragmentos/article/download/513/413 .

Eis que vieram Magos do Oriente... (Mt 2,1)

O “movimento criativo”, e portanto inaugural, de um texto, nunca é um exercício fácil. Selecionar e eleger as palavras apropriadas para a abertura de uma reflexão, especialmente para mim (que sou um perfeccionista), é sempre um desafio. Assim, expor as dificuldades, os percalços e trajetórias de tal ato é uma saída possível. Inicio o meu texto de abertura narrando brevemente como os Magos do Oriente, também chamados de Três Sábios do Oriente, Três Reis ou Reis de Colônia, tornaram-se tema de interesse em minhas pesquisas historiográficas e teológicas. 
Em 6 janeiro de 2007, coincidentemente Dia de Reis, a emissora televisiva Discovery Channel Brasil exibiu um episódio da série Detetives do Passado – Os Três Reis Magos1, escrito e apresentado pelo egiptólogo inglês Bob Brier, que guiava a audiência às questões mais fundamentais e muito debatidas pelos estudiosos acerca da historicidade e significação dos Reis Magos – cuja inserção no conjunto oficial dos textos bíblicos dá-se exclusivamente no Evangelho de Mateus, no Capítulo 2, versículos de 1 a 162. Esta discussão despertou-me para a complexidade e extensão do debate. Qual não foi minha surpresa quando, ao passar a investigar mais profundamente sobre o assunto, notei que no plano científico nacional as pesquisas concernentes ao tema eram reduzidas, com exceção, talvez, dos estudos das manifestações genericamente denominadas de Folias de Reis3, que recebem maior atenção de historiadores, antropólogos, jornalistas e folcloristas, mas, que constituem um fenômeno à parte no Brasil, ainda que estejam ligados às tradições dos magos.  
Estamos tão acostumados a ver no campo das Artes, em especial nas Artes Plásticas – em pinturas, mosaicos, estatuária, relevos, sarcófagos antigos, etc - os três régios visitantes do Oriente: Gaspar, Baltasar e Melchior (Melquior ou Belchior, outras grafias possíveis deste nome), carregando e ofertando o incenso, a mirra e o ouro4 ao menino Jesus, que tomamos muitas das dimensões das tradições litúrgicas cristãs ligadas ao Advento (a espera pelo nascimento de Jesus) e à Epifania (manifestação divina de Jesus reconhecida na visita e adoração dos Magos) como certas e quase inquestionáveis. Entretanto, a História e a Teologia permitem-nos levantar uma série de questões essenciais: o número, os nomes e a proveniência exatos dos magos, que ao contrário do que é dito e pensado pelo senso comum, não são descritos pelo Evangelho de Mateus; o valor e significados dos presentes ofertados; a natureza da Estrela de Belém, uma das questões acerca da natividade que mais tem chamado a atenção dos artistas, estudiosos e pensadores desde o século II d.C.; o ano do nascimento de Jesus, e por conseguinte o ano da visita dos Magos; a historicidade desta passagem do relato de Mateus, que para alguns estudiosos, sobretudo àqueles preocupados com o “Jesus Histórico”, é questionável e deveria ser interpretada como uma elaboração discursiva do hagiógrafo, uma midrash= “1. m. bíblica é a elaboração bastante livre de textos anteriores ou de tradições orais, com fina­li­dades teológi­cas ou de edificação. Desta maneira são tratados temas dos livros de Samuel e dos Reis pelos livros das *Crónicas; te­mas do êxodo e das pragas do Egipto pelo livro da *Sabedoria; etc. 2. m. ra­bí­nica é a releitura homilética de textos do AT para tirar conclusões morais [halaka] ou para edificar os fiéis [haggada]”5; e outras várias questões, cujas respostas nem sempre estão facilmente disponíveis ao nosso alcance.
Em nossos artigos, textos e reflexões futuros buscaremos apresentar alguns princípios de respostas a estas e muitas outras questões relativas ao estudo dos Magos evangélicos, mas, para além de dar respostas, pretendemos instrumentalizar nosso público leitor a fim de que ele mesmo tenha elementos básicos para pensar sobre o assunto de modo mais independente e fundamentado.
Mas por que estudar os Magos do Oriente? Qual a relevância de tal pesquisa? Oras, para responder esta pergunta ocuparíamos o espaço de outro post, assim, detemo-nos aqui em um único elemento, que julgamos ser central para responder a estas indagações: a remota antiguidade da tradição que celebra e rememora a visita e adoração dos Magos, a Epifania, que segundo crêem os estudiosos originou-se entre os cristãos do Egito do séc. II d.C. Esta celebração centrava-se nas manifestações da divindade de Jesus: no seu nascimento, na adoração dos magos, no seu batismo e no milagre das bodas de Caná. Foi no Oriente, então, que esta prática surgiu. Ao passo que no Ocidente, somente no século IV, esta festividade seria abraçada, quando aí a celebração do Natal já era comum6.       

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Notas e Referências Bibliográficas:
1. SPRY-LEVERTON, P. Detetives do Passado – Os Três Reis Magos. (45 minutos) The Learning Channel, UK: 2004, exibido pelo Discovery Channel Brasil em 6 janeiro de 2007.                                                          Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=CiXzGikLjrQ&feature=related .
2. Sempre utilizaremos em nossos estudos A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, ou edições posteriores e revisadas.

3. Como pode ser lido em SILVA, Affonso M. Furtado da.  Reis magos: história, arte, tradições: fontes e referências. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 2006, p.46-56 e em CAVALHEIRO, C.C. Folia de Reis em Sorocaba. Sorocaba, SP: Edição do Autor, 2007, p. 21-23.
4. Antigas tradições apontam que Gaspar, o mais jovem dos três, ofertara o incenso; Baltasar, o mago de idade intermediária, oferecera a mirra; e por fim, Melchior, já de idade avançada, levara o ouro. Conferir MACCA, M.; ALMEIDA, A. Santos Reis: protetores dos viajantes. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003, p. 9-21.
5. FALCÃO, M. F. Enciclopédia Católica Popular (Paulinas Editora), vocábulo midrash.                                     Disponível em: http://www.portal.ecclesia.pt/catolicopedia/artigo.asp?id_entrada=1227 .
6. GULEVICH, T. Encyclopedia of Christmas and New Year’s celebrations. 2 ed. Detroit: Omnigraphics, 2003, p. 217-220; JONES, L. (ed.) Encyclopedia of religion. 2ed. Milwaukee: Macmillian Reference USA, 2005, vol.4, p. 2818; SALAMONE, F. A. (ed.) The Encyclopedia of religious rites, rituals, and festivals. Nova Iorque; Londres: Routledge, 2004, p. 126-129.