quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Dia de Santos Reis: origens históricas e práticas contemporâneas

Na tarde de 11 de dezembro de 2010 posso afirmar que de fato compreendi o sentido da Epifania. Uma chuva fraca iniciara-se. O cachorro de meu irmão latia lá fora, perto do portão de entrada, anunciando que algo se aproximava da casa. Um “tamborilar” estranho, incomum, podia ser ouvido de dentro de casa, da cozinha, onde eu estava. Vinha da rua. Uma figura infantil, trajada com uma fantasia multicores, aproximou-se do portão e dirigiu-se a mim indagando “aqui tem Folia de Reis...?”. Eu, da janela, surpreso – por nunca ter presenciado esta cena, mas por ter percebido do que se tratava – respondi “que não...!”, pois como bem sei (ou achava que sabia) as casas a serem visitadas pelos grupos de Folia de Reis são previamente definidas. Eu nunca vira uma Folia de Reis de perto, e muito menos no meu distrito. Então, um senhor mais velho, trazendo uma viola pendurada na frente e segurando um “estandarte dos reis” perguntou-me se poderia entrar em nossa garagem para cantar. Eu disse alegremente “que sim...!”. Outros vários foliões, incluindo homens, mulheres e crianças, adentraram o quintal da frente e a cantoria iniciou-se. Violas, pandeiros, um outro instrumento que assemelhava-se a uma sanfona, mas menor, três crianças fantasiadas coloridamente, eu segurava o estandarte, como “padrinho”, e próximo de mim minha mãe, que chegara depois, “madrinha” sem saber, olhava desconfiada, sem entender quem eram aquelas pessoas estranhas que eu deixara entrar em casa1.
Este verídico e inusitado episódio, que tomo como um “fato histórico” de minha vida, nos permite construir uma breve, mas necessária reflexão, sobre o que os cristãos celebram no dia de hoje, 6 de janeiro: a Epifania.
Quando afirmei que sabia de imediato do que se tratava, ao ver o menino fantasiado, isso ocorreu em função de minhas leituras e pesquisas sobre os magos, que no caso do Brasil, guiar-me-ia indubitavelmente, em algum momento, para a leitura de um texto sobre o assunto – Folia de Reis. Mas veja que eu nunca havia participado de uma. O mesmo vale para minha mãe, só que no caso dela, conhecia menos ainda a festividade. Isso quer dizer que em nossos dias, nos grandes e médios centros urbanos, estas práticas de devoção aos magos estão cada vez mais reduzidas a certos espaços, ainda que tenhamos a impressão de que àquilo que costumamos chamar genericamente de Folia de Reis seja uma tradição “comum”. Se isto ocorre em relação às Folias, o quadro sobre a compreensão do sentido da Epifania é mais enuviado ainda.
Primeiro, vejamos sucintamente as origens das Folias no Brasil. Suas origens mais remotas encontram-se nos autos religiosos medievais, comuns já no século XI, especialmente os autos natalinos, nos quais a cena da Adoração dos Magos passa a ser parte integrante: os chamados Officium Stellae2. Estas práticas serviram como base para os folguedos e festividades que ocorriam em várias datas do ano, chamados de Festas dos Foliões, e que eram marcados por sátiras aos temas religiosos – com encenações e danças. Dentre estes temas satirizados estava também a Festa dos Reis Magos. Existem documentos comprovando a existência destas Folias nos cancioneiros ibéricos dos séculos XVI e XVII. Um dos registros mais antigos conhecidos está na poesia de Gil Vicente (1465?-1536?): “(...) Yo no soy nada de prosas/ Ni salmos, ni aleluias/ Agradan-me las folias/ Y bailes; e otras cosas/ Saltaderas son las mias”3.
Além das folias, as Reisadas (ou Cantar os Reis ou Pedir os Reis) e as Janeiras também são costumes seculares em Portugal. Embora sejam práticas bastante mescladas hoje em dia, outrora fazia-se a distinção entre as reisadas e as janeiras – a primeira seria de caráter mais religioso e a segunda de caráter profano4. Contudo, não se pode deixar de lado as influências de outras festividades, como as pastorinhas portuguesas, os villancicos e mascaradas da Espanha, ou ainda os noëls na França e os Sternsingers na Alemanha6 – assim, por toda a Europa, houveram por séculos celebrações que rememoravam a jornada dos visitantes do menino Jesus. Isto nos permite afirmar então que, embora as raízes de nossa Folia estejam em parte fincadas nas tradições ibéricas, também sofreram, e ainda sofrem, a forte influência destes diversos festejos natalinos, e outros mais.
   A introdução da devoção aos magos no Brasil fez-se através do trabalho missionário jesuítico – autos religiosos, pregações, procissões e em muitas outras atividades. A título de exemplo, os nomes dos magos eram dados a lugares e pessoas, já em fins do século XVI. Uma carta de 1562, escrita pelo Pe. Leonardo do Vale, já menciona uma “festa dos Reys”7.

São documentados reisados e janeiras aqui no Brasil nos idos do século XVIII, antes mesmo de termos as Folias propriamente ditas. O chamado Manuscrito de 1818 – de autoria anônima, criado no Brasil e que traz estrofes e versos da letra de uma canção para ser entoada em festejos natalinos - recolhido e estudado pelo pesquisador e musicólogo Antônio Alexandre Bispo, parece apresentar três indícios importantes para a compreensão da formação das Folias no Brasil: 1º) alocado e estudado em Portugal, o documento é citado lá como um novo estilo de se cantar os reis; 2º) seu conteúdo é religioso e católico; e 3º) este, exterior ao documento, consiste em registros do uso do termo folia à época de sua composição, como por exemplo o fez o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire ao referir-se a uma festa na Província de Goiás em 18198.
Caracterizando-se por um cortejo de caráter devocional por excelência, e marcado por uma organização interna, que define atribuição de atividades rituais aos seus integrantes e participantes, a Folia de Reis busca reviver todo o percurso da jornada que os Três Reis Santos fizeram, desde sua longínqua terra no Oriente até sua chegada a Belém para adorar Jesus. Os grupos de foliões recebem nomes distintos nos diversas locais de sua ocorrência: Terno de Folias de Reis, Reisado, Folia de Santos Reis, Terno de Reis, e outros9. Em cidades como Sorocaba, por exemplo, adota-se o nome Companhia de Santos Reis, evitando assim o uso do termo folia, devido ao sentido de algazarra e excesso que esta palavra assume hoje em dia10.
Ocorre com maior preponderância nas regiões Sudeste e em partes da Norte, sendo que no Nordeste, Sul e Centro-Oeste sua ocorrência é menor, dando lugar a outras festividades que fazem algum tipo de referência aos Reis Magos. É no Estado de Minas Gerais que se observa o maior contingente de praticantes e adeptos – mais de 4 mil grupos11.
Estende-se comumente do período do Natal, que se inicia no fim de novembro, até 6 de janeiro, dia de Reis. Como observa Guilherme Porto em seu clássico estudo “As folias de Reis no Sul de Minas”, a época das folias pode ir de 25 de dezembro a 6 de janeiro, marcando simbolicamente os 13 dias de viagem dos magos, ou então de 25 de dezembro a 6 de janeiro, ou ainda durar três dias ou mesmo um só12.
Quanto à sua composição, é bastante variável, segundo os municípios e regiões do país. Poderíamos sintetizá-la em três grupos de indivíduos: aquele que leva a bandeira ou estandarte de Santos Reis; as personagens típicas, das quais poder-se-ia citar os palhaços; e os instrumentistas e cantores13. Além destes temos os demais foliões, que são àqueles que acompanham a folia sem uma função ritual estabelecida e os que esperam a passagem do cortejo em sua própria casa.
Ao percorrer o roteiro, trajeto ou giro da folia, ou seja, todo o caminho pelo qual a folia passa – que é comumente planejado de antemão e inclui um local de saída, os “pousos” de parada, que são as casas a serem visitadas, e um local de chegada, no qual a Festa de Santos Reis ocorrerá em 6 de janeiro -  os foliões buscam celebrar o nascimento de Jesus ao percorrer simbolicamente os passos dos magos peregrinos. Conforme observa Neide R. Gomes, vice presidente da Comissão Paulista de Folclore, professora e musicóloga, esta celebração do natalício de Jesus menino é o elemento comum que une toda a diversidade das folias no Brasil14.
Se valendo de instrumentos tais como viola, sanfona, caixa, adufe ou pandeiro, e até mesmo violinos, bandolim, violão, cavaquinho reco-reco e clarineta15, os cantores e instrumentistas têm um verdadeiro cancioneiro registrado em suas memórias. Tem música para partida, para chegada, para abençoar as casas ao longo do trajeto e para outras várias possíveis situações. “É noite, lá fora tem gente/ ô menino, vá ver quem é./ É os treis Reis de Oriente/ na barquinha de Noé”, é um exemplo destes ricos versos usados nestas Cantorias de Reis16.
A bandeira ou estandarte carregado é o objeto ritual mais sagrado nas folias. Feita de pano brilhante e afixado numa haste vertical, a ele se afixam fitas multicores, fotos de santos ou pessoas e até cédulas de dinheiro. É carregado pelo bandeireiro e entregue temporariamente aos donos da casas em que as folias chegam.



Personagem interessante nas folias é a do palhaço. Também chamado de bastião, alferes, mascarados, Mateus, morongo, marengo, pastorinhos, malungos, marungo17, a atuação destes alegres e dançantes integrantes evoca os soldados que teriam perseguido Jesus e os próprios magos. Contudo, como observa Carlos R. Brandão, sua atuação opõe-se a de todos os outros. Em certos grupos, como é o caso dos grupos da cidade de Mossâmedes, em Goiás, o palhaço faz provocações e piadas com os foliões. Mas, em ocasiões especiais, ou no último dia do trajeto, ele é convidado a retirar sua máscara, prostrar-se diante do presépio e pedir perdão18. Trata-se de uma conversão simbólica. Nas “folias paulistas e mineiras, os palhaços vão adiante, enquanto nas fluminenses ficam na retaguarda, proibidos de ultrapassar a bandeira”19. Interessante estudo sobre o tema é a tese de doutorado de Daniel Bitter intitulada “A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas folias de reis”, de 2008, e publicada em 2010 pela 7 Letras, que avalia o lugar dos objetos rituais nas folias de reis como mediadores entre o social e o simbólico,  como materializadores de vínculos fundamentais no contexto das folias20. Dentre estes objetos encontra-se a máscara do palhaço folião.
Uma última, mas importantíssima questão que gostaria de tratar aqui diz respeito à Epifania. Ainda que o Dia de Reis ou Santos Reis seja celebrado entre nós no dia 6 de janeiro, o nome mais apropriado para a solenidade que a liturgia cristã celebra nesta data é Epifania. Termo de origem grega, significa “aparição, manifestação”, e refere-se a uma aparição de natureza sobrenatural e benévola. É a primeira manifestação da divindade de Jesus aos povos da terra, logo após seu nascimento, reconhecida através da visita dos magos que vêm lhe trazer valiosas e simbólicas oferendas. É vista pelos pensadores cristãos, desde os primórdios do cristianismo, como sinal da ação inclusiva da mensagem salvífica de que Jesus era portador. Aos magos, sendo gentios (não judeus), foi revelada através de um sinal astronômico a iminência da chegada do messias, do cristo, “o ungido”.
A religiosidade ou piedade popular deu-lhe o nome de Folia de Reis. “É das festas mais antigas (séc. IV), celebrada tanto no Oriente como no Ocidente, embora o objecto principal desta festa, nas Igrejas do Oriente, seja o *Baptismo do Se­nhor que, entre nós, se celebra como so­le­ni­dade normalmente no domingo que encerra o ciclo do Na­tal (...)”21.
O biblista e exegeta Antônio M. Galvão faz críticas aos estudiosos por comumente tratarem do assunto de modo simplista, superficial e descuidado. Os reisados, lendas e cantos populares, todos focados na longa jornada dos magos parecem esquecer-se, ou deixar em segundo plano, o dia em que na tradição cristã o Senhor “se mostrou às nações”22. Assim, embora não negue a importância ou riqueza das folias, o autor atenta-nos para camadas de sentido mais profundas e significativas que repousam sobre estes folguedos natalinos. Observa ainda que entre os cristãos do Oriente esta riqueza epifânica tem sido melhor observada e celebrada.
Para além de enunciar este “descuido”, creio que é importante fazer ecoar que as soluções encontradas por muitas folias ao longo dos anos, na tentativa de clarificar as áreas de silêncio que os evangelhos nos oferecem sobre a viagem dos magos, devem ser aceitas como a capacidade criativa que é própria da religiosidade popular. Ainda que a ausência de teoria e método histórico/teológico incorra em imprecisões, interpretações questionáveis e muitas vezes superficiais, o conhecimento e experiência que emanam dos foliões não devem ser subestimados.
Além de fontes históricas em potencial, as Folias de Reis são um verdadeiro patrimônio cultural, memória viva da religiosidade cristã e manifestação de brasilidade.           
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Notas e Referências Bibliográficas:
1.  Padrinho e madrinha são termos usados para referir-se ao dono(a) da casa que recebe a visita da Folia. Cf. CAVALHEIRO, C. C. Folia de Reis em Sorocaba. Sorocaba, SP: Edição do Autor, 2007, p. 86.
2. PESSOA, J. M.; FÉLIX, M. As Viagens dos Reis Magos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p. 132.
3. Ibidem, p. 134.
4. Ibidem, p. 135
5. Ibidem, p. 139.
6. Para maiores detalhes conf. SILVA, Affonso M. Furtado da. Reis magos: história, arte, tradições: fontes e referências. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 2006, p. 36—45.
7. Cf. PESSOA; FÉLIX, p. 150-151.
8. Ibidem, p. 164-167.
9. CAVALHEIRO, p. 22.
10. Idem.
11. NOEL, F. L. Manifestação de fé em ritmo de folia. In Problemas Brasileiros, n.397, Ano XLVII, p. 2-7, jan./fev. 2010, p. 2-3. Também pode ser lido online em:
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=361&breadcrumb=1&Artigo_ID=5559&IDCategoria=6363&reftype=1 .
12. PORTO, G. As folias de Reis no Sul de Minas. Rio de Janeiro: Funarte; Instituto Nacional do Folclore, 1982, p. 13.
13. Ibidem, p. 19.
14. “O objetivo é sempre o mesmo: comemorar o nascimento de Jesus. Em cada região se canta isso de forma diferente, além de variarem os instrumentos. Há folias até com pífanos, no nordeste. Algumas apresentam as figuras dos Reis Magos. E há também folias só de palhaços”, cf. NOEL, p. 3.
15. PORTO, p. 24-25.
16. MACCA, M.; ALMEIDA, A. V. de. Santos Reis: protetores dos viajantes. São Paulo: Ed. Planeta, 2003, p. 29. 
17. CAVALHEIRO, p. 25.
18. BRANDÃO, C. R. A folia de reis de Mossâmedes. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977, p. 5; 32.
19. NOEL, p. 4.
20. Cf. BITTER, D. A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Dissertação de Doutorado. UFRJ, IFCS. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp086548.pdf .
21. FALCÃO, M. F. Enciclopédia Católica Popular (Paulinas Editora), vocábulo Epifania.                                     Disponível em: http://www.portal.ecclesia.pt/catolicopedia/artigo.asp?id_entrada=686 .
22. GALVÃO, A. M. A revelação de Jesus: na visita dos “Reis Magos” a Belém. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2002, p. 11-14. 

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