domingo, 21 de agosto de 2016

Marco Polo e os Três Reis Magos: um relato do século XIII


       Quando pronunciamos o nome de Marco Polo as primeiras imagens que surgem em nossa mente são as de um viajante aventureiro da época das grandes navegações, que conheceu muitos mares, terras longínquas, governantes poderosos e povos exóticos... todavia, contrariando o censo comum, tais representações do imaginário coletivo estão parcialmente corretas.

Pouquíssimo se sabe sobre sua vida. De fato sua existência histórica é questionada pelos estudiosos1. Italiano, talvez nascido em Veneza, ele teria se engajado numa longa aventura rumo ao Oriente durante o século XIII (antes da era das “Grandes Navegações”), ao lado de seu pai e de um tio, e as experiências vividas por Polo teriam sido tamanhas que acabaram sendo registradas no Livro das maravilhas ou A descrição do mundo, escrito pela primeira vez no século XIV, obra que se tornou um verdadeiro best-seller em sua época, “fato testemunhado pela quantidade considerável de manuscritos que se conservaram até nossos dias”2.

Nas várias versões conhecidas dos escritos de Polo, há sobretudo duas passagens que nos interessam por sua temática: os miraculosos eventos ocorridos quando da visita dos três magos a Jesus e o famoso Preste João3, que seria um rei cristão e descendente direto dos magos4.

Transcrevemos a seguir na íntegra a parte do relato documental que narra a visita dos magos, localizado nos capítulos 31 e 32 do Livro Primeiro de “O Livro das Maravilhas5:         

“31. A Pérsia – Os Três Reis Magos

A Pérsia era noutros tempos uma grande província, nobre e importante, mas os tártaros destruíram tudo. Na Pérsia encontra-se a cidade de Sava [talvez a atual cidade de Saveh, a cem quilômetros a Sudoeste de Teerã] e dali partiram os três Reis Magos, quando vieram adorar a Jesus cristo. Nesta cidade estão eles sepultados em três magníficos túmulos; encima-os uma tabuleta de pedra, muito bem lavrada. Estes túmulos encontram-se lado a lado; os corpos dos Reis Magos estão intactos, bem com as barbas e cabelo6.



Um chama-se Baltazar, o outro Gaspar e o terceiro Belchior. Misser Marco fez um interrogatório a várias pessoas sobre os três Reis Magos e nada soube acerca de estes três reis, a não ser que eram na verdade reis e que estavam ali sepultados desde a mais remota antiguidade. Mas eu vou contar-vos o que ele averiguou mais tarde sobre este assunto:

Um pouco mais distante, a três dias de viagem, encontra-se um alcáçar chamado Gasalaca [o nome seria Kala-i Atachparastan=Castelo dos Adoradores do Fogo, mas o lugar não está determinado. Segundo indicação dada no capítulo seguinte, deveria situar-se perto de Kashan], isto é, castelo, Castelo dos Adoradores do Fogo. Isto corresponde à verdade, pois estes homens adoram o fogo; e vou dize-vos por que é que o adoram as gentes desse castelo.

Conta-se que, na antiguidade, três reis desta região partiram para adorar a um profeta que acabava de nascer e levaram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra, para saberem se esse profeta era Deus, se era rei da terra ou mago. E comentavam que, se pegasse o ouro, seria um rei terreno, e se pegasse o incenso, seria um deus, e se pegasse a mirra, então seria um mago.

Chegando ao local onde havia nascido o Menino, o mais novo daqueles reis saiu da caravana e foi sozinho vê-lo, e verificou que era parecido consigo próprio, pois tinha a sua idade e estava vestido como ele; ficou assombrado o Rei Mago.

Logo a seguir foi o segundo Rei Mago, que era de meia-idade, e certificou-se do mesmo; aumentava a surpresa deles.

Finalmente foi o terceiro rei, que era o mais velho dos três, e sucedeu-lhe aquilo que tinha sucedido aos outros. Ficaram muito pensativos. Quando se reuniram, contaram uns aos outros o que tinham visto e maravilharam-se todos.

Decidiram, então, ir os três ao mesmo tempo, encontrando o Menino do tamanho e com a idade que lhe correspondia (pois não tinha mais do que três dias). Prostraram-se diante dele, oferecendo-lhe o ouro, o incenso e a mirra. O Menino aceitou tudo aquilo e em troca ofereceu-lhes um cofrezinho fechado. Os Reis Magos voltaram aos respectivos países.

32. Ainda os Reis Magos  

            Após terem cavalgado durante algum tempo, os três reis disseram entre si que queriam ver o que o Menino lhes havia dado. Abrindo o cofrezinho observaram que só tinha dentro uma pedra; surpreendidos, perguntaram o que significaria aquilo. Pois que, tendo o Menino aceitado as três oferendas, compreendido estava que era Deus, rei terrestre e mago; e deveria haver um sentido oculto naquilo tudo.

            Com efeito, o Menino deu aos três reis a pedra com0 a dizer-lhes que fossem firmes e constantes em sua fé. Os três reis pegaram nela e foram deitá-la a um poço, ignorando ainda o seu significado; e quando a pedra caiu ao poço, um fogo ardente baixou do céu, penetrando no poço.


 
            Vendo isto os reis ficaram estupefatos e arrependeram-se de terem atirado fora a pedra, pois que era um talismã. Apanharam o fogo que saía do poço, para levá-lo até os respectivos países e pô-lo num magnífico e riquíssimo templo.

Desde então, esse fogo continua a arder e todos o adoram como se fora um deus. E os sacrifícios e holocaustos que oferecem são todos com esse fogo sagrado; nunca vão buscar outro fogo que não seja esse, tão maravilhoso, andando léguas e léguas para apanhá-lo quando ele se acaba, isto pelas razões que conheceis. São numerosas as pessoas que adoram este fogo naquela região.

Tudo isto foi contado ao meu senhor Marco e também lhe foi dito que, dos três Reis Magos, um era de Sava, outro de Ava [Aveh, a uns 20 quilômetros ao sul de Saveh] e o terceiro de Gasalaca7. E agora, que vos contei esta história, citarei outras cidades da Pérsia, falando dos seus costumes e gente.”

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Notas, Referências Bibliográficas e Filmográficas:

 1. MOLE, Ben. (Dir.). Arquivos confidenciais. Marco Polo. (24 min.) Parthenon Entertainment para o National Geographic Channel, 2011.

2. BROSSE, Jacques. As fantásticas (e verdadeiras) aventuras de Marco Polo. História Viva, São Paulo, n.29, mar.2006. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/as_fantasticas__e_verdadeiras__aventuras_de_marco_polo_imprimir.html .

3. Cf. COSTA, Ricardo da. Por uma geografia mitológica: a lenda medieval do Preste João, sua permanência, transferência e “morte”. História 9. Revista do Departamento de História da UFES. Vitória: EDUFES, 2001, p. 53-64. Disponível em: http://www.ricardocosta.com/textos/preste.htm .

4. Ibidem, p.57. É válido observar que as origens do lendário Preste João (Padre João), governante de um maravilhoso reino nalgum ponto das “Índias”, se encontram no século XII na época das Cruzadas, mais especificamente numa carta atribuída ao bispo e cronista alemão Otto de Freising (1114-1158). O reino dele é descrito como uma terra de delícias, de riquezas, povoada por seres fantásticos e humanos muito virtuosos, lugar onde a pobreza e a guerra não existiam, cf. COSTA, op. cit., p. 54-56. No século XII, as narrativas que tratavam das batalhas entre as forças militares do Preste e as terríveis hordas muçulmanas certamente inspiraram os reinos cristãos da Europa. Essa ligação dos reis magos com as cruzadas representou uma importante mudança na imagem dos magos, numa época em que os contatos entre Ocidente e Oriente eram retomados de diversas formas – fosse através da guerra, da religião, da economia ou da política.  Cf. The Crusading Magi In: TREXLER, Richard C. The journey of the Magi: meanings in history of a Christian story. New Jersey: Princeton University Press, 1997, p. 72-75. 

5. POLO, Marco. O Livro das Maravilhas: a descrição do mundo.  Tradução de Elói Braga Júnior. Introdução e notas de Stéphane Yerasimos. Porto Alegre: L&PM, 2009, p.61-63. Para a parte que trata do Preste João ver os capítulos 64 a 68 do Livro Primeiro, cf. POLO, op.cit., p. 97-101.

6. Marco Polo escreveu que em Sava estavam os túmulos dos magos, contudo, como observou Abraham Valentine Williams Jackson, no início do séc. XX se mantinha a tradição popular de que numa cripta da igreja de Mart Mariam ou Mart Maryam (Santa Maria), na cidade de Úrmia, no atual Irã, haviam túmulos de dois ou pelo menos de um dos magos, além da famosa cidade de Colônia, Alemanha, que supostamente abriga as relíquias dos três reis magos desde o século XII. Cf. JACKSON, A.V. Williams. Persia past and present; a book of travel and research, with more than two hundred illustrations and a map.  New York: The Macmillan Company, 1906, p. 102-103. Disponível em:
https://archive.org/details/persiapastpresen00jackrich  e  JACKSON, A. V. W. The Magi in Marco Polo and the Cities in Persia from Which They Came to Worship the Infant Christ. Journal of the American Oriental Society, v.26, p.79-83, 1905, ver especialmente p. 83. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/592877 . Outra tradição sustenta que teriam sido os magos os construtores da igreja de Úmbria, onde um deles seria sepultado mais tarde, cf. ABOONA, Hinnis. Assyrians, Kurds, and Ottomans: intercommunal relations on the periphery of the Ottoman Empire. Amherst, Nova Iorque: Cambria Press, 2008, p. 23.

7. Para as cidades de onde teriam partido os três reis magos Cf. JACKSON, A. V. W. The Magi in Marco Polo and the Cities in Persia from Which They Came to Worship the Infant Christ. Journal of the American Oriental Society, v.26, p.79-83, 1905. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/592877 .

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