Quando pronunciamos o nome de Marco Polo as
primeiras imagens que surgem em nossa mente são as de um viajante
aventureiro da época das grandes navegações, que conheceu muitos mares, terras
longínquas, governantes poderosos e povos exóticos... todavia, contrariando o
censo comum, tais representações do imaginário coletivo estão parcialmente
corretas.
Pouquíssimo se sabe sobre sua vida. De fato sua existência histórica é
questionada pelos estudiosos1.
Italiano, talvez nascido em Veneza, ele teria se engajado numa longa aventura
rumo ao Oriente durante o século XIII (antes da era das “Grandes Navegações”),
ao lado de seu pai e de um tio, e as experiências vividas por Polo teriam sido
tamanhas que acabaram sendo registradas no Livro
das maravilhas ou A descrição do
mundo, escrito pela primeira vez no século XIV, obra que se tornou um
verdadeiro best-seller em sua época,
“fato testemunhado pela quantidade considerável de manuscritos que se conservaram
até nossos dias”2.
Nas várias versões conhecidas dos escritos de Polo, há sobretudo duas
passagens que nos interessam por sua temática: os miraculosos eventos ocorridos
quando da visita dos três magos a Jesus e o famoso Preste João3, que seria um rei cristão e
descendente direto dos magos4.
Transcrevemos a seguir na íntegra a parte do relato documental que narra a
visita dos magos, localizado nos capítulos 31 e 32 do Livro Primeiro de “O Livro das Maravilhas”5:
“31. A Pérsia – Os
Três Reis Magos
A Pérsia era noutros tempos uma grande província, nobre e
importante, mas os tártaros destruíram tudo. Na Pérsia encontra-se a cidade de
Sava [talvez a atual cidade de Saveh, a cem quilômetros a Sudoeste de Teerã] e
dali partiram os três Reis Magos, quando vieram adorar a Jesus cristo. Nesta
cidade estão eles sepultados em três magníficos túmulos; encima-os uma tabuleta
de pedra, muito bem lavrada. Estes túmulos encontram-se lado a lado; os corpos
dos Reis Magos estão intactos, bem com as barbas e cabelo6.
Um chama-se Baltazar, o outro Gaspar e o terceiro Belchior.
Misser Marco fez um interrogatório a várias pessoas sobre os três Reis Magos e
nada soube acerca de estes três reis, a não ser que eram na verdade reis e que
estavam ali sepultados desde a mais remota antiguidade. Mas eu vou contar-vos o
que ele averiguou mais tarde sobre este assunto:
Um pouco mais distante, a três dias de viagem, encontra-se
um alcáçar chamado Gasalaca [o nome seria Kala-i Atachparastan=Castelo dos
Adoradores do Fogo, mas o lugar não está determinado. Segundo indicação dada no
capítulo seguinte, deveria situar-se perto de Kashan], isto é, castelo, Castelo
dos Adoradores do Fogo. Isto corresponde à verdade, pois estes homens adoram o
fogo; e vou dize-vos por que é que o adoram as gentes desse castelo.
Conta-se que, na antiguidade, três reis desta região
partiram para adorar a um profeta que acabava de nascer e levaram-lhe
presentes: ouro, incenso e mirra, para saberem se esse profeta era Deus, se era
rei da terra ou mago. E comentavam que, se pegasse o ouro, seria um rei
terreno, e se pegasse o incenso, seria um deus, e se pegasse a mirra, então
seria um mago.
Chegando ao local onde havia nascido o Menino, o mais novo
daqueles reis saiu da caravana e foi sozinho vê-lo, e verificou que era
parecido consigo próprio, pois tinha a sua idade e estava vestido como ele;
ficou assombrado o Rei Mago.
Logo a seguir foi o segundo Rei Mago, que era de meia-idade,
e certificou-se do mesmo; aumentava a surpresa deles.
Finalmente foi o terceiro rei, que era o mais velho dos
três, e sucedeu-lhe aquilo que tinha sucedido aos outros. Ficaram muito
pensativos. Quando se reuniram, contaram uns aos outros o que tinham visto e
maravilharam-se todos.
Decidiram, então, ir os três ao mesmo tempo, encontrando o
Menino do tamanho e com a idade que lhe correspondia (pois não tinha mais do
que três dias). Prostraram-se diante dele, oferecendo-lhe o ouro, o incenso e a
mirra. O Menino aceitou tudo aquilo e em troca ofereceu-lhes um cofrezinho
fechado. Os Reis Magos voltaram aos respectivos países.
32. Ainda os Reis
Magos
Após terem
cavalgado durante algum tempo, os três reis disseram entre si que queriam ver o
que o Menino lhes havia dado. Abrindo o cofrezinho observaram que só tinha
dentro uma pedra; surpreendidos, perguntaram o que significaria aquilo. Pois
que, tendo o Menino aceitado as três oferendas, compreendido estava que era
Deus, rei terrestre e mago; e deveria haver um sentido oculto naquilo tudo.
Com efeito,
o Menino deu aos três reis a pedra com0 a dizer-lhes que fossem firmes e
constantes em sua fé. Os três reis pegaram nela e foram deitá-la a um poço,
ignorando ainda o seu significado; e quando a pedra caiu ao poço, um fogo
ardente baixou do céu, penetrando no poço.
Vendo isto
os reis ficaram estupefatos e arrependeram-se de terem atirado fora a pedra,
pois que era um talismã. Apanharam o fogo que saía do poço, para levá-lo até os
respectivos países e pô-lo num magnífico e riquíssimo templo.
Desde então, esse fogo continua a arder e todos o adoram
como se fora um deus. E os sacrifícios e holocaustos que oferecem são todos com
esse fogo sagrado; nunca vão buscar outro fogo que não seja esse, tão
maravilhoso, andando léguas e léguas para apanhá-lo quando ele se acaba, isto
pelas razões que conheceis. São numerosas as pessoas que adoram este fogo
naquela região.
Tudo isto foi contado ao meu senhor Marco e também lhe foi
dito que, dos três Reis Magos, um era de Sava, outro de Ava [Aveh, a uns 20
quilômetros ao sul de Saveh] e o terceiro de Gasalaca7. E agora, que vos contei esta história, citarei outras
cidades da Pérsia, falando dos seus costumes e gente.”
_______________
Notas, Referências
Bibliográficas e Filmográficas:
2. BROSSE, Jacques. As fantásticas (e
verdadeiras) aventuras de Marco Polo. História
Viva, São Paulo, n.29, mar.2006. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/as_fantasticas__e_verdadeiras__aventuras_de_marco_polo_imprimir.html .
3. Cf. COSTA, Ricardo da. Por uma geografia mitológica: a
lenda medieval do Preste João, sua permanência, transferência e “morte”. História 9. Revista do Departamento de
História da UFES. Vitória: EDUFES, 2001, p. 53-64. Disponível em: http://www.ricardocosta.com/textos/preste.htm
.
4. Ibidem, p.57. É válido observar que as origens do lendário Preste João (Padre João), governante de um maravilhoso reino nalgum ponto das “Índias”, se encontram no século XII na época das Cruzadas, mais especificamente numa carta atribuída ao bispo e cronista alemão Otto de Freising (1114-1158). O reino dele é descrito como uma terra de delícias, de riquezas, povoada por seres fantásticos e humanos muito virtuosos, lugar onde a pobreza e a guerra não existiam, cf. COSTA, op. cit., p. 54-56. No século XII, as narrativas que tratavam das batalhas entre as forças militares do Preste e as terríveis hordas muçulmanas certamente inspiraram os reinos cristãos da Europa. Essa ligação dos reis magos com as cruzadas representou uma importante mudança na imagem dos magos, numa época em que os contatos entre Ocidente e Oriente eram retomados de diversas formas – fosse através da guerra, da religião, da economia ou da política. Cf. The Crusading Magi In: TREXLER, Richard C. The journey of the Magi: meanings in history of a Christian story. New Jersey: Princeton University Press, 1997, p. 72-75.
5. POLO, Marco. O Livro das Maravilhas: a descrição do mundo. Tradução de Elói Braga Júnior. Introdução e notas de Stéphane Yerasimos. Porto Alegre: L&PM, 2009, p.61-63. Para a parte que trata do Preste João ver os capítulos 64 a 68 do Livro Primeiro, cf. POLO, op.cit., p. 97-101.
6. Marco Polo escreveu que em Sava estavam os túmulos dos magos, contudo, como observou Abraham Valentine Williams Jackson, no início do séc. XX se mantinha a tradição popular de que numa cripta da igreja de Mart Mariam ou Mart Maryam (Santa Maria), na cidade de Úrmia, no atual Irã, haviam túmulos de dois ou pelo menos de um dos magos, além da famosa cidade de Colônia, Alemanha, que supostamente abriga as relíquias dos três reis magos desde o século XII. Cf. JACKSON, A.V. Williams. Persia past and present; a book of travel and research, with more than two hundred illustrations and a map. New York: The Macmillan Company, 1906, p. 102-103. Disponível em:
https://archive.org/details/persiapastpresen00jackrich e JACKSON, A. V.
W. The Magi in Marco Polo and the Cities in Persia from Which They Came to
Worship the Infant Christ. Journal of the
American Oriental Society, v.26, p.79-83, 1905, ver especialmente p. 83. Disponível
em: http://www.jstor.org/stable/592877 . Outra tradição sustenta que
teriam sido os magos os construtores da igreja de Úmbria, onde um deles seria
sepultado mais tarde, cf. ABOONA, Hinnis. Assyrians, Kurds, and Ottomans: intercommunal
relations on the periphery of the Ottoman Empire. Amherst,
Nova Iorque: Cambria Press, 2008, p. 23.
7. Para as cidades de onde teriam partido os três reis magos Cf. JACKSON, A. V. W. The Magi in Marco Polo and the Cities in Persia from Which They Came to Worship the Infant Christ. Journal of the American Oriental Society, v.26, p.79-83, 1905. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/592877 .
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário, crítica ou sugestão.