Das hagiografias1 medievais a Legenda áurea2, ou Lenda
dourada, do monge dominicano genovês Jacopo de Varazze (1228-1298), é sem
dúvidas a obra mais conhecida, mais duradoura e de maior importância.
Jacopo pretendeu
construir um vasto texto contendo algumas das mais respeitáveis narrativas
hagiográficas que haviam chegado à sua época, a fim de disponibilizá-las aos
seus “colegas de hábitos”, os dominicanos ou frades pregadores, para que eles tivessem à
disposição o material necessário para suas homilias. A data de sua redação é incerta: entre 1253 e 12703.
A obra continha 182
capítulos originais, os quais foram ampliados posteriormente para os 243
capítulos hoje conhecidos – certamente trabalho dos copistas que a preservaram
nos séculos seguintes4.
Trata-se de um best-seller da literatura medieval, e
como bem observou o historiador e medievalista francês Jérôme Baschet: “(...) a
Legenda áurea (...) é para a hagiografia o que as Summas são para a Teologia5.
A influência da Legenda sobre a arte europeia também é
bastante relevante, a ponto de ter sido referida como “a fonte principal da
iconografia cristã até quase nossos dias”6.
O período em que Jacopo realizou a seleção e redação
de sua narrativa, a Europa do século XIII, era uma época de mudanças no que diz
respeito aos critérios e modelos de santidade, que a partir de então passavam a
estar focados mais nos comportamentos morais dos santos, e menos nos milagres
alcançados por eles7,
isto é, santos e santas deveriam ser modelos de conduta moral e não
simplesmente milagreiros. Ainda assim, é sempre válido lembrar que os cultos às
relíquias e as peregrinações aos lugares santos mantinham sua proeminência, e
locais como Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela estavam entre os centros
que mais atraíam peregrinos8.
Como não poderia ser
diferente, os magos também possuíam lugares dedicados à sua veneração, dos
quais destacava-se a Catedral de Colônia, Alemanha, que abrigava seus restos
mortais num belíssimo relicário de ouro maciço e pedras preciosas do século
XIII9. Em 30 Jul. 1245 e
em 25 Abr. 1247 o papa Inocêncio IV conferiu duas concessões à Catedral de
Colônia: aqueles que a ela se dirigissem com "devoção e reverência e em
pureza de coração" em duas datas especiais - no dia de sua consagração e
no dia da festa dos santos Três Magos - receberiam 40 dias de penitência anual10, isto é, 40 dias garantidos
de absolvição dos pecados.
No capítulo 14 da Legenda
áurea, intitulado A Epifania do Senhor,
Varazze falou sobre os magos, seus vários nomes, os significados dos seus
presentes e inclusive da veneração prestada às suas relíquias em Colônia. Abaixo
transcrevemos na íntegra esse capítulo11.
“14. A Epifania do Senhor
A Epifania do Senhor é celebrada por quatro milagres, o que
a faz receber quatro nomes diferentes. Nessa data os magos adoram Cristo, João
batiza Cristo, Cristo transforma a água em vinho e alimenta 5 mil homens com
cinco pães. Jesus tinha treze dias quando, conduzidos pela estrela, os magos
foram encontrá-lo, daí o nome Epifania, de epí,
"em cima", e phanos,
"aparição", porque a estrela apareceu no céu para indicar que Cristo
era o verdadeiro Deus. No mesmo dia, 29 anos depois, Ele foi batizado no
Jordão. Isso aconteceu, diz Lucas, quando Ele tinha trinta anos, pois tendo na
verdade 29 anos e treze dias, Beda observa que Ele estava no seu trigésimo ano,
o que é a crença da Igreja romana. Por ter sido batizado no Jordão, daí vem o
outro nome dado à festa, Teofania, de Theos,
"Deus", e phanos,
"aparição", porque nesse momento a Trindade manifestou-se: o Pai, na
voz que se fez ouvir; o Filho, na carne; o Espírito Santo, na forma de uma
pomba. No mesmo dia, um ano depois, quando tinha trinta anos e treze dias, ou
seja, estava nos seus 3 1 anos, transformou a água em vinho, daí o outro nome
dado à solenidade, Betânia, de beth,
"casa", porque através de um milagre feito numa casa ele apareceu
como verdadeiro Deus. Ainda nesse mesmo dia, um ano depois, quando tinha 31
anos e treze dias, isto é, 32, saciou 5 mil homens com cinco pães, segundo Beda
e o hino cantado em muitas igrejas, que começa com Illuminans altissimum. Daí o nome de Fagifania, de phagê, "boca" e
"comer". Há dúvidas sobre se esse quarto milagre foi realizado nesse
dia, porque isso não é afirmado nem por Beda nem por João, 6, que ao falar de
tal milagre diz apenas que " o dia de Páscoa estava próximo".
De forma geral, aceita-se que a quádrupla aparição deu-se na
mesma data. A primeira pela estrela sobre o presépio, a segunda pela voz do Pai
sobre o rio Jordão, a terceira pela transformação da água em vinho na refeição,
a quarta pela multiplicação dos pães no deserto. Mas é principalmente a
primeira aparição que celebramos hoje, por isso é sua história que vamos contar
a seguir.
Quando do nascimento do Senhor, foram a Jerusalém três
magos, chamados em hebraico Apelio, Amerio, Damasco; em grego Galgalat,
Malgalat, Sarathin; em latim Gaspar, Baltazar, Melquior. A palavra mago tem
três significações: "enganador" "feiticeiro" e
"sábio". Alguns pretendem que esses reis foram chamados magos, isto
é, enganadores, por terem enganado Herodes, não voltando até ele. Está dito no
Evangelho, sobre Herodes: "Vendo que tinha sido enganado pelos magos
etc." (Mateus 2,16) Mago também quer dizer feiticeiro. Os feiticeiros do faraó
eram chamados magos, e Crisóstomo diz que daí vem o nome deles. De acordo com
esse autor, seriam feiticeiros a quem o Senhor quis converter revelando seu
nascimento, e com isso dar aos pecadores a esperança do perdão. Mago também
quer dizer sábio, pois em hebreu corresponde a "escriba", em grego, a
"filósofo", em latim, a "sábio" São portanto chamados de
magos pela Escritura para indicar que eram sábios, donos de grande sabedoria.
Esses três sábios reis foram a Jerusalém com um grande séquito.
Mas por que os magos foram a Jerusalém, se o Senhor não nasceu ali? Remígio dá
quatro razões para isso. A primeira é que os magos souberam a época do
nascimento de Cristo, mas não o lugar. Ora, como Jerusalém era uma cidade de
rei e de sumo sacerdote, pensaram que uma criança tão distinta não devia nascer
em outro lugar. A segunda é que mesmo que o nascimento não tivesse ocorrido
ali, naquela cidade de muitos escribas e doutores na Lei eles poderiam melhor se
informar a respeito. A terceira é que os judeus ficariam sem desculpa, pois
eles teriam podido dizer: "Sabemos o lugar do nascimento, mas ignoramos o
tempo, e é por isso que não acreditamos" Ora, os magos indicaram aos
judeus o tempo, e os judeus indicaram o lugar aos magos. A quarta é para que a
diligência dos magos se tornasse a condenação da indolência dos judeus, porque
os magos acreditaram a partir de uma só profecia, enquanto os judeus
recusaram-se a crer em várias. Os magos buscaram um rei estrangeiro, os judeus
não procuraram o deles próprio. Uns vieram de longe, os outros permaneceram
inertes no local.
Os magos foram reis e sucessores de Balaão. Foram a
Jerusalém ao ver a estrela, seguindo a profecia de seu pai: "Uma estrela
se erguerá sobre Jacó e um homem sairá de Israel" (Números 24,17). Outro motivo de sua ida
é dado por Crisóstomo em seu comentário sobre Mateus:
Certos autores concordam que alguns astrólogos escolheram
doze entre eles para observar o céu, e se um viesse a morrer, seu filho ou um
de seus próximos o substituiria. Todos os anos, em diferentes meses, os doze
subiam na montanha da Vitória e lá permaneciam três dias, fazendo abluções e
pedindo a Deus que lhes mostrasse a estrela predita por Balaão. Certa vez, no
dia do nascimento do Senhor, eles estavam na montanha quando apareceu uma
estrela com a forma de um magnífico menino, sobre cuja cabeça brilhava uma
cruz, e que disse aos magos: "Apressem-se em ir à terra de Judá, onde
encontrarão o rei recém-nascido que vocês buscam"
Eles puseram-se imediatamente a caminho. Mas como, em tão
pouco tempo, apenas treze dias, foi possível percorrer tão longo caminho, isto
é, do Oriente até Jerusalém, que se diz estar no centro do mundo? Segundo
Remígio, foi o Menino que eles buscavam que os levou assim depressa. Ou então
podemos crer, com Jerônimo, que foram montados em dromedários, animais muito
velozes que fazem em um dia o caminho que um cavalo leva três para percorrer.
Por isso é chamado dromedário, de dromos,
"corrida", e ares,
"força" Chegando a Jerusalém, perguntaram onde estava aquele que
nascera rei dos judeus. Não perguntaram se nascera, e sim onde nascera. E
quando alguém indagou: "Como sabem que esse rei nasceu?", eles
responderam: "Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo" Essa
resposta quer dizer duas coisas: "Nós, que vivemos no Oriente, vimos a
estrela que indica seu nascimento pousada sobre a Judéia", ou então:
"Estando em nosso país, vimos sua estrela no Oriente" Com essas
palavras, como diz Remígio, eles reconheceram que o Menino era um verdadeiro
homem, um verdadeiro rei e um verdadeiro Deus. Um verdadeiro homem, quando
disseram: "Onde está aquele que nasceu?" Um verdadeiro rei, ao
acrescentarem: "Rei dos judeus" Um verdadeiro Deus, ao manifestarem:
"Viemos adorá-lo", pois todos concordavam que só Deus deve ser
adorado.
Mas ao saber disso, Herodes ficou inquieto, e Jerusalém
inteira com ele. O rei ficou inquieto por três motivos. Primeiro, por medo de
que os judeus recebessem como seu rei esse recém-nascido e expulsassem a ele, Herodes,
como estrangeiro. O que fez Crisóstomo dizer: "Assim como um ramo situado
no alto de uma árvore é agitado por uma leve brisa, também os homens elevados
ao ápice da dignidade são atormentados pelo mais leve rumor" Segundo, por
medo de ser incriminado pelos romanos se alguém fosse chamado rei sem ter sido
instituído por Augusto. Os romanos tinham ordenado que nenhum deus ou rei fosse
reconhecido sem ordem ou permissão deles. Terceiro, porque, diz Gregório, tendo
nascido o rei do Céu, o rei da terra ficou alvoroçado já que a grandeza
terrestre é diminuída quando a grandeza celeste é revelada. Toda Jerusalém
ficou inquieta com ele por três razões. Primeira, porque os ímpios não poderiam
se rejubilar com a vinda do Justo. Segunda, para, mostrando-se inquieta, adular
o rei inquieto. Terceira, porque assim como o choque do vento agita as águas,
se os reis se batem o povo fica alvoroçado, por temer ser envolvido na luta
entre ambos. Essa foi a razão dada por Crisóstomo.
Então Herodes convocou todos os sacerdotes e todos os
escribas para perguntar onde nasceria o Cristo. Quando soube que seria em Belém de Judá, chamou os magos em
segredo e informou-se com eles do instante em que a estrela tinha aparecido,
pedindo-lhes que depois de encontrarem o menino voltassem para lhe dizer,
fingindo querer adorar aquele que desejava matar. Notemos que assim que os
magos entraram em Jerusalém, a estrela parou de conduzi-los, e isso por três
razões. A primeira, para que fossem forçados a indagar sobre o lugar de
nascimento do Cristo, verificando então que esse nascimento estava pressagiado
não somente pela estrela, mas também por várias profecias. A segunda, porque ao
terem buscado o auxílio dos homens, mereceram ficar sem o auxílio divino. A
terceira, porque de acordo com o apóstolo os sinais foram dados aos infiéis e a
profecia aos fiéis: sendo pagãos, os magos foram guiados por um sinal, a
estrela, que deixou de lhes aparecer quando passaram a estar entre os judeus,
que eram fiéis. Essas três razões foram dadas pela GLOSA (compilação feita em
Paris em meados do século XII, reunindo comentários bíblicos antigos e
contemporâneos).
Depois que saíram de Jerusalém, a estrela voltou a guiá-los
até o lugar em que estava o menino. Sobre a natureza dessa estrela há três
opiniões, explicadas por Remígio. Alguns sustentam que era o Espírito Santo,
que assim como desceria mais tarde sobre o Senhor, depois do seu batismo, sob a
forma de uma pomba, apareceu aos magos sob a forma de uma estrela. Outros
dizem, com Crisóstomo, que a estrela era o anjo que apareceu aos pastores para
anunciar o nascimento. Como estes eram judeus, então racionais, o anjo apareceu
sob forma racional, mas para os gentios, portanto irracionais, assumiu forma
irracional. Outros ainda, e essa é a opinião mais verossímil, garantem que foi
uma estrela recém-criada, que após cumprir sua missão voltou a seu estado
primitivo.
Essa estrela, segundo Fulgêncio (esse discípulo de Santo Agostinho foi bispo de Ruspe, no
Norte da África, onde faleceu em 53. Suas obras dedicaram-se a defender a
ortodoxia contra as heresias do arianismo e do semipelagianismo), diferia das demais de três maneiras. Em localização,
porque não estava no firmamento, mas suspensa num espaço aéreo próximo da
terra. Em brilho, porque era obviamente mais fulgurante do que as outras, já
que o sol não era capaz de ofuscá-la, sendo visível em pleno meio-dia. Em
movimento, que não era circular mas progressivo, indo à frente dos magos, como
um guia. A Glosa comenta as palavras
de Mateus, 2: "Esta estrela do
nascimento do Senhor etc.", acrescentando três outras diferenças.
Primeira, ela diferia em sua origem, já que as outras haviam sido criadas no
começo do mundo e esta acabava de ser criada. Segunda, em sua destinação, pois
as outras tinham sido feitas para indicar tempos e estações, como está dito no
capítulo primeiro do Gênesis, e esta
para mostrar o caminho aos magos. Terceira, em sua duração, já que as outras
são perpétuas, e esta voltou a seu estado primitivo após cumprir sua missão.
Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram enorme
alegria. Notemos que a estrela vista pelos magos é quíntupla, é estrela
material, estrela espiritual, estrela intelectual, estrela racional e estrela
suprasubstancial. A primeira, material, eles viram no Oriente. A segunda,
espiritual, que é a fé, eles viram em seu coração, porque se os raios dessa
estrela não tivessem atingido seu coração nunca teriam conseguido ver a
primeira estrela. Eles tiveram fé na humanidade do Salvador quando disseram:
"Onde está aquele que nasceu?" Tiveram fé em sua dignidade real
quando disseram: "Rei dos judeus" Tiveram fé em sua divindade quando
disseram: "Viemos adorá-lo". A terceira, a estrela intelectual, que é
o anjo, eles viram durante o sono, quando foram avisados por ele para não
voltarem para junto de Herodes. Mas, de acordo com certa glosa, não foi um
anjo, e sim o próprio Senhor que lhes apareceu. A quarta estrela, racional, fo
i a Santa Virgem, que viram no estábulo. A quinta, supra-substancial, foi
Cristo, que viram no presépio. A aparição dessas duas últimas estrelas está
referida na Escritura quando diz: "Entrando na casa, encontraram o menino
com Maria, sua mãe etc." (Mateus 2,1 1)
Cada uma dessas realidades é chamada estrela. A primeira
pelos Salmos: "A lua e as estrelas que você criou". A segunda pelo Eclesiastes, 43: "A beleza do Céu,
isto é, do homem celeste, é o brilho das estrelas, isto é, das virtudes".
A terceira por Baruch, 3: "As
estrelas difundiram sua luz e alegraram-se". A quarta pela liturgia:
"Salve, estrela do mar". A quinta pelo Apocalipse, último capítulo: "Sou o rebento e o filho de Davi,
a estrela brilhante, a estrela da manhã". Ao verem a primeira e a segunda,
os magos alegraram-se; ao verem a terceira, rejubilaram-se; ao verem a quarta,
rejubilaram-se com grande alegria; ao verem a quinta, rejubilaram- se com
enorme alegria. Ou, como diz a Glosa:
"Rejubila-se com alegria aquele que se rejubila em Deus, que é a
verdadeira alegria", e acrescenta: "grande, porque nada é maior que
Ele", e "muito grande, porque podemos nos rejubilar com uma alegria
mais ou menos grande" ou então, pelo exagero dessas expressões o
evangelista quis mostrar que os homens rejubilam-se mais com as coisas perdidas
que voltaram a encontrar do que com as que sempre possuíram.
Depois de terem entrado na humilde morada e encontrado a
criança com a mãe, os magos ajoelharam-se e cada um ofereceu presentes: ouro, incenso
e mirra. Agostinho exclama sobre isso:
Ó infância extraordinária, à qual os astros estão
submetidos. Que grandeza! Que glória imensa n'Aquele diante de cujos cueiros os
anjos prosternam-se, os astros assistem, os reis tremem e os sábios põem-se de joelhos!
Ó bem-aventurada choupana, trono de Deus fora do Céu, iluminado não por um
candeeiro, mas por uma estrela! Ó celeste palácio em que habita não um rei
coberto de pedrarias, mas Deus encarnado, que tem por leito delicado uma dura
manjedoura, por cobertura dourada um teto de palha escuro, decorado por uma
estrela! Quando olho aqueles cueiros fico encantado, e olho para os Céus;
quando vejo o presépio com um mendigo mais brilhante que os astros, fico
inflamado.
Diz Bernardo: "Que fazem, magos, que fazem, adorando
uma criança de peito num vil estábulo? Será ele um Deus? Que fazem ao lhe ofertarem
ouro? Será um rei? Onde está, então, seu salão régio, seu trono, sua corte?
Será que a corte é o estábulo, o trono a manjedoura, os cortesãos José e Maria?
Os magos pareceram insensatos, para serem sábios".
Eis o que diz a esse respeito Hilário no segundo livro de
seu Sobre a Tríndade: "Uma
virgem pare, mas aquele que é parido vem de Deus. Ao mesmo tempo ouvem-se os
vagidos do menino e a louvação dos anjos. Enquanto humano suja os cueiros,
enquanto Deus é adorado. A dignidade do poder não fica diminuída, pois a
humildade da carne é exaltada. No Cristo menino encontramos humildade e
enfermidade, mas também sublimidade e grandeza divinas" Comentando a Epístola aos hebreus, diz Jerônimo:
"Olhe o berço de Cristo e verá o Céu; perceberá um menino chorando numa
manjedoura, mas ao mesmo tempo ouvirá os cânticos dos anjos. Herodes o
persegue, mas os magos o adoram; os fariseus não o conhecem, mas a estrela o
proclama; Ele é batizado por um inferior, mas das alturas ressoa a voz de Deus;
Ele é imerso na água, mas desce sobre Ele a pomba, isto é, o Espírito Santo sob
forma de pomba".
Podemos apontar várias razões para os presentes ofertados
pelos magos. Primeira, diz Remígio, era uma tradição antiga que ninguém se
aproximava de Deus ou de um rei de mãos vazias. Os persas e os caldeus tinham o
costume de oferecer presentes a tais personagens, e os magos, como está dito na
HISTÓRIA ESCOLÁSTICA (obra na qual Pedro Comestor (c.1140 - c. 1179) comenta toda
a história santa. estabelecendo relações entre ela e a história profana), vinham dos confins da Pérsia e da Caldéia, onde corre o
rio de Sabá, por isso seu país era conhecido por Sabéia. Segunda, diz Bernardo:
"Eles ofereceram ouro à bem-aventurada Virgem para aliviar sua miséria,
incenso para afastar a fe ti dez do estábulo, mirra para fortalecer os membros
do menino e para expulsar insetos hediondos" Terceira, porque ouro paga
tributos, incenso serve para sacrifícios e mirra para sepultar os mortos.
Assim, com esses três presentes reconheceram em Cristo o poder real, a
majestade divina e a mortalidade humana. Quarta, porque ouro significa amor,
incenso prece, mirra mortificação da carne, e devemos oferecer as três coisas a
Cristo. Quinto, porque esses três presentes indicavam três qualidades de
Cristo: divindade preciosíssima, alma devotadíssima, carne íntegra e
incorruptível.
As oferendas também estavam preditas pelas três coisas
guardadas na Arca da Aliança. A vara que floresceu representava a carne de
Cristo ressuscitada, conforme está nos Salmos: "Minha carne refloresceu
etc.". As tábuas em que estavam gravados os mandamentos significavam a
alma em que estão escondidos todos os tesouros da ciência e da sabedoria de
Deus. O maná indicava sua divindade, que tem todo sabor e toda suavidade. Por
ouro, que é o mais precioso dos metais, entende-se a divindade preciosíssima;
por incenso, a alma devotadíssima, porque incenso significa devoção e, de
acordo com os Salmos, prece ("Que
minha prece se eleve como incenso"); por mirra, que é um preservativo da
corrupção, a carne que não foi corrompida.
Avisados em sonho para não voltarem a Herodes, os magos
regressaram a seu país por outro caminho. Eis, portanto, a história dos magos:
vieram sob a direção da estrela; foram instruídos por homens, melhor dizendo,
por profetas; retornaram guiados por um anjo e morreram no Senhor. Seus corpos
repousavam em Milão, numa igreja que é agora da Ordem dos Irmãos Pregadores,
mas foram depois levados a Colônia. Anteriormente esses corpos tinham sido
trasladados para Constantinopla por Helena, mãe de Constantino, depois foram
transferidos para Milão pelo santo bispo Eustórgio, por fim o imperador
Henrique transportou-os de Milão para Colônia, às margens do Reno, onde são
objeto da devoção e da reverência do povo. (Escrevendo cerca de cem
anos depois desses fatos, Jacopo engana-se quanto à sua cronologia. Na verdade,
as relíquias dos Reis Magos foram transferidas de Milão para Colônia pelo
arcebispo Reinaldo de Dassel. chanceler do imperador Frederico Barba Ruiva. em
junho e julho de 1164, provavelmente como punição pela insubordinação daquela
cidade italiana ao poder imperial)
_______________
Notas e Referências
Bibliográficas:
1. Palavra utilizada para referir-se
à área do conhecimento que tem os santos e sua veneração por objetos, podendo
ser dividida em duas categorias: a hagiografia prática (a produção das
narrativas em si) e a hagiografia crítica (o estudo científico da primeira). Cf. DELEHAYE, Hippolyte. Hagiography.
In: The Catholic Encyclopedia. Vol.
7. Nova Iorque: Robert Appleton Company, 1910. Disponível em:
http://www.newadvent.org/cathen/07106b.htm.
Acesso em: 27/08/16.
2. O título original do
texto é Legendae sanctorum, vulgo
historia lombardica dicta, e ficou conhecido como Legenda áurea, isto é, um
conjunto de textos de grande valor, como observou o medievalista Hilário Franco
Júnior: “(...) (legenda, literalmente "aquilo que deve ser lido",
também tinha o sentido de "leitura da vida de santos") de grande
valor (daí áurea, "de ouro"). Cf. Apresentação In: VARAZZE, Jacopo
de. Legenda áurea: vidas de santos.
4. re. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 12.
3. Ibidem, p. 11-12.
4. Cf. VORÁGINE, Jacobo de
La. El libro de la navidad. Madrid:
Ediciones Encuentro, 2003, p. 5.
5. BACHET, Jérôme. Civilização feudal: do ano 1000 à
colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 220.
6. VORÁGINE, Op. cit. p. 5.
7. BACHET, Op. cit. p. 221.
8. PAIS, Marco Antonio de Oliveira.
O despertar da Europa: a Baixa Idade
Média. 13. ed. São Paulo: Atual, 2004, p. 56.
9. Para a história da
transladação das relíquias dos três magos da cidade de Milão à cidade de
Colônia em meados do século XII, Cf. FÉLIX, Madeleine. De Milão a Colônia. In: PESSOA, J. M.; FÉLIX, M. As
Viagens dos Reis Magos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p. 69-110.
10. Para os documentos contendo
as concessões de Inocêncio IV, Cf. WEBB, Diana. Pilgrims and
Pilgrimage in the Medieval West.
Londres: I.B. Tauris, 2001, p. 74-75.
11. Cf. VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. 4. re. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 149-156. O autor também fez pequenas menções aos magos em
outros capítulos: batismo dos magos pelo apóstolo Tomé (ibidem p. 88); a
manifestação da estrela aos magos, a ida à Jerusalém, a conversa com Herodes e
sua jornada de volta por outro caminho (ibidem, p. 121-122); visita de Santa
Paula aos locais santos, incluindo o lugar em que os magos adoraram Jesus
(ibidem, p. 210); sobre o ouro presenteado pelos magos que teria sido dado aos
pobres pela Virgem Maria (ibidem, p. 247).
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