domingo, 28 de agosto de 2016

Os magos na Legenda áurea de Jacopo de Varazze


Das hagiografias1 medievais a Legenda áurea2, ou Lenda dourada, do monge dominicano genovês Jacopo de Varazze (1228-1298), é sem dúvidas a obra mais conhecida, mais duradoura e de maior importância.

Jacopo pretendeu construir um vasto texto contendo algumas das mais respeitáveis narrativas hagiográficas que haviam chegado à sua época, a fim de disponibilizá-las aos seus “colegas de hábitos”, os dominicanos ou frades pregadores, para que eles tivessem à disposição o material necessário para suas homilias. A data de sua redação é incerta: entre 1253 e 12703.

A obra continha 182 capítulos originais, os quais foram ampliados posteriormente para os 243 capítulos hoje conhecidos – certamente trabalho dos copistas que a preservaram nos séculos seguintes4.

Trata-se de um best-seller da literatura medieval, e como bem observou o historiador e medievalista francês Jérôme Baschet: “(...) a Legenda áurea (...) é para a hagiografia o que as Summas são para a Teologia5.

A influência da Legenda sobre a arte europeia também é bastante relevante, a ponto de ter sido referida como “a fonte principal da iconografia cristã até quase nossos dias”6.

 O período em que Jacopo realizou a seleção e redação de sua narrativa, a Europa do século XIII, era uma época de mudanças no que diz respeito aos critérios e modelos de santidade, que a partir de então passavam a estar focados mais nos comportamentos morais dos santos, e menos nos milagres alcançados por eles7, isto é, santos e santas deveriam ser modelos de conduta moral e não simplesmente milagreiros. Ainda assim, é sempre válido lembrar que os cultos às relíquias e as peregrinações aos lugares santos mantinham sua proeminência, e locais como Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela estavam entre os centros que mais atraíam peregrinos8.

Como não poderia ser diferente, os magos também possuíam lugares dedicados à sua veneração, dos quais destacava-se a Catedral de Colônia, Alemanha, que abrigava seus restos mortais num belíssimo relicário de ouro maciço e pedras preciosas do século XIII9. Em 30 Jul. 1245 e em 25 Abr. 1247 o papa Inocêncio IV conferiu duas concessões à Catedral de Colônia: aqueles que a ela se dirigissem com "devoção e reverência e em pureza de coração" em duas datas especiais - no dia de sua consagração e no dia da festa dos santos Três Magos - receberiam 40 dias de penitência anual10, isto é, 40 dias garantidos de absolvição dos pecados.

No capítulo 14 da Legenda áurea, intitulado A Epifania do Senhor, Varazze falou sobre os magos, seus vários nomes, os significados dos seus presentes e inclusive da veneração prestada às suas relíquias em Colônia. Abaixo transcrevemos na íntegra esse capítulo11.

14. A Epifania do Senhor

A Epifania do Senhor é celebrada por quatro milagres, o que a faz receber quatro nomes diferentes. Nessa data os magos adoram Cristo, João batiza Cristo, Cristo transforma a água em vinho e alimenta 5 mil homens com cinco pães. Jesus tinha treze dias quando, conduzidos pela estrela, os magos foram encontrá-lo, daí o nome Epifania, de epí, "em cima", e phanos, "aparição", porque a estrela apareceu no céu para indicar que Cristo era o verdadeiro Deus. No mesmo dia, 29 anos depois, Ele foi batizado no Jordão. Isso aconteceu, diz Lucas, quando Ele tinha trinta anos, pois tendo na verdade 29 anos e treze dias, Beda observa que Ele estava no seu trigésimo ano, o que é a crença da Igreja romana. Por ter sido batizado no Jordão, daí vem o outro nome dado à festa, Teofania, de Theos, "Deus", e phanos, "aparição", porque nesse momento a Trindade manifestou-se: o Pai, na voz que se fez ouvir; o Filho, na carne; o Espírito Santo, na forma de uma pomba. No mesmo dia, um ano depois, quando tinha trinta anos e treze dias, ou seja, estava nos seus 3 1 anos, transformou a água em vinho, daí o outro nome dado à solenidade, Betânia, de beth, "casa", porque através de um milagre feito numa casa ele apareceu como verdadeiro Deus. Ainda nesse mesmo dia, um ano depois, quando tinha 31 anos e treze dias, isto é, 32, saciou 5 mil homens com cinco pães, segundo Beda e o hino cantado em muitas igrejas, que começa com Illuminans altissimum. Daí o nome de Fagifania, de phagê, "boca" e "comer". Há dúvidas sobre se esse quarto milagre foi realizado nesse dia, porque isso não é afirmado nem por Beda nem por João, 6, que ao falar de tal milagre diz apenas que " o dia de Páscoa estava próximo".

De forma geral, aceita-se que a quádrupla aparição deu-se na mesma data. A primeira pela estrela sobre o presépio, a segunda pela voz do Pai sobre o rio Jordão, a terceira pela transformação da água em vinho na refeição, a quarta pela multiplicação dos pães no deserto. Mas é principalmente a primeira aparição que celebramos hoje, por isso é sua história que vamos contar a seguir.

Quando do nascimento do Senhor, foram a Jerusalém três magos, chamados em hebraico Apelio, Amerio, Damasco; em grego Galgalat, Malgalat, Sarathin; em latim Gaspar, Baltazar, Melquior. A palavra mago tem três significações: "enganador" "feiticeiro" e "sábio". Alguns pretendem que esses reis foram chamados magos, isto é, enganadores, por terem enganado Herodes, não voltando até ele. Está dito no Evangelho, sobre Herodes: "Vendo que tinha sido enganado pelos magos etc." (Mateus 2,16) Mago também quer dizer feiticeiro. Os feiticeiros do faraó eram chamados magos, e Crisóstomo diz que daí vem o nome deles. De acordo com esse autor, seriam feiticeiros a quem o Senhor quis converter revelando seu nascimento, e com isso dar aos pecadores a esperança do perdão. Mago também quer dizer sábio, pois em hebreu corresponde a "escriba", em grego, a "filósofo", em latim, a "sábio" São portanto chamados de magos pela Escritura para indicar que eram sábios, donos de grande sabedoria.

Esses três sábios reis foram a Jerusalém com um grande séquito. Mas por que os magos foram a Jerusalém, se o Senhor não nasceu ali? Remígio dá quatro razões para isso. A primeira é que os magos souberam a época do nascimento de Cristo, mas não o lugar. Ora, como Jerusalém era uma cidade de rei e de sumo sacerdote, pensaram que uma criança tão distinta não devia nascer em outro lugar. A segunda é que mesmo que o nascimento não tivesse ocorrido ali, naquela cidade de muitos escribas e doutores na Lei eles poderiam melhor se informar a respeito. A terceira é que os judeus ficariam sem desculpa, pois eles teriam podido dizer: "Sabemos o lugar do nascimento, mas ignoramos o tempo, e é por isso que não acreditamos" Ora, os magos indicaram aos judeus o tempo, e os judeus indicaram o lugar aos magos. A quarta é para que a diligência dos magos se tornasse a condenação da indolência dos judeus, porque os magos acreditaram a partir de uma só profecia, enquanto os judeus recusaram-se a crer em várias. Os magos buscaram um rei estrangeiro, os judeus não procuraram o deles próprio. Uns vieram de longe, os outros permaneceram inertes no local.

Os magos foram reis e sucessores de Balaão. Foram a Jerusalém ao ver a estrela, seguindo a profecia de seu pai: "Uma estrela se erguerá sobre Jacó e um homem sairá de Israel" (Números 24,17). Outro motivo de sua ida é dado por Crisóstomo em seu comentário sobre Mateus:

Certos autores concordam que alguns astrólogos escolheram doze entre eles para observar o céu, e se um viesse a morrer, seu filho ou um de seus próximos o substituiria. Todos os anos, em diferentes meses, os doze subiam na montanha da Vitória e lá permaneciam três dias, fazendo abluções e pedindo a Deus que lhes mostrasse a estrela predita por Balaão. Certa vez, no dia do nascimento do Senhor, eles estavam na montanha quando apareceu uma estrela com a forma de um magnífico menino, sobre cuja cabeça brilhava uma cruz, e que disse aos magos: "Apressem-se em ir à terra de Judá, onde encontrarão o rei recém-nascido que vocês buscam"

Eles puseram-se imediatamente a caminho. Mas como, em tão pouco tempo, apenas treze dias, foi possível percorrer tão longo caminho, isto é, do Oriente até Jerusalém, que se diz estar no centro do mundo? Segundo Remígio, foi o Menino que eles buscavam que os levou assim depressa. Ou então podemos crer, com Jerônimo, que foram montados em dromedários, animais muito velozes que fazem em um dia o caminho que um cavalo leva três para percorrer. Por isso é chamado dromedário, de dromos, "corrida", e ares, "força" Chegando a Jerusalém, perguntaram onde estava aquele que nascera rei dos judeus. Não perguntaram se nascera, e sim onde nascera. E quando alguém indagou: "Como sabem que esse rei nasceu?", eles responderam: "Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo" Essa resposta quer dizer duas coisas: "Nós, que vivemos no Oriente, vimos a estrela que indica seu nascimento pousada sobre a Judéia", ou então: "Estando em nosso país, vimos sua estrela no Oriente" Com essas palavras, como diz Remígio, eles reconheceram que o Menino era um verdadeiro homem, um verdadeiro rei e um verdadeiro Deus. Um verdadeiro homem, quando disseram: "Onde está aquele que nasceu?" Um verdadeiro rei, ao acrescentarem: "Rei dos judeus" Um verdadeiro Deus, ao manifestarem: "Viemos adorá-lo", pois todos concordavam que só Deus deve ser adorado.

Mas ao saber disso, Herodes ficou inquieto, e Jerusalém inteira com ele. O rei ficou inquieto por três motivos. Primeiro, por medo de que os judeus recebessem como seu rei esse recém-nascido e expulsassem a ele, Herodes, como estrangeiro. O que fez Crisóstomo dizer: "Assim como um ramo situado no alto de uma árvore é agitado por uma leve brisa, também os homens elevados ao ápice da dignidade são atormentados pelo mais leve rumor" Segundo, por medo de ser incriminado pelos romanos se alguém fosse chamado rei sem ter sido instituído por Augusto. Os romanos tinham ordenado que nenhum deus ou rei fosse reconhecido sem ordem ou permissão deles. Terceiro, porque, diz Gregório, tendo nascido o rei do Céu, o rei da terra ficou alvoroçado já que a grandeza terrestre é diminuída quando a grandeza celeste é revelada. Toda Jerusalém ficou inquieta com ele por três razões. Primeira, porque os ímpios não poderiam se rejubilar com a vinda do Justo. Segunda, para, mostrando-se inquieta, adular o rei inquieto. Terceira, porque assim como o choque do vento agita as águas, se os reis se batem o povo fica alvoroçado, por temer ser envolvido na luta entre ambos. Essa foi a razão dada por Crisóstomo.

Então Herodes convocou todos os sacerdotes e todos os escribas para perguntar onde nasceria o Cristo. Quando soube que seria em Belém de Judá, chamou os magos em segredo e informou-se com eles do instante em que a estrela tinha aparecido, pedindo-lhes que depois de encontrarem o menino voltassem para lhe dizer, fingindo querer adorar aquele que desejava matar. Notemos que assim que os magos entraram em Jerusalém, a estrela parou de conduzi-los, e isso por três razões. A primeira, para que fossem forçados a indagar sobre o lugar de nascimento do Cristo, verificando então que esse nascimento estava pressagiado não somente pela estrela, mas também por várias profecias. A segunda, porque ao terem buscado o auxílio dos homens, mereceram ficar sem o auxílio divino. A terceira, porque de acordo com o apóstolo os sinais foram dados aos infiéis e a profecia aos fiéis: sendo pagãos, os magos foram guiados por um sinal, a estrela, que deixou de lhes aparecer quando passaram a estar entre os judeus, que eram fiéis. Essas três razões foram dadas pela GLOSA (compilação feita em Paris em meados do século XII, reunindo comentários bíblicos antigos e contemporâneos).

Depois que saíram de Jerusalém, a estrela voltou a guiá-los até o lugar em que estava o menino. Sobre a natureza dessa estrela há três opiniões, explicadas por Remígio. Alguns sustentam que era o Espírito Santo, que assim como desceria mais tarde sobre o Senhor, depois do seu batismo, sob a forma de uma pomba, apareceu aos magos sob a forma de uma estrela. Outros dizem, com Crisóstomo, que a estrela era o anjo que apareceu aos pastores para anunciar o nascimento. Como estes eram judeus, então racionais, o anjo apareceu sob forma racional, mas para os gentios, portanto irracionais, assumiu forma irracional. Outros ainda, e essa é a opinião mais verossímil, garantem que foi uma estrela recém-criada, que após cumprir sua missão voltou a seu estado primitivo.

Essa estrela, segundo Fulgêncio (esse discípulo de Santo Agostinho foi bispo de Ruspe, no Norte da África, onde faleceu em 53. Suas obras dedicaram-se a defender a ortodoxia contra as heresias do arianismo e do semipelagianismo), diferia das demais de três maneiras. Em localização, porque não estava no firmamento, mas suspensa num espaço aéreo próximo da terra. Em brilho, porque era obviamente mais fulgurante do que as outras, já que o sol não era capaz de ofuscá-la, sendo visível em pleno meio-dia. Em movimento, que não era circular mas progressivo, indo à frente dos magos, como um guia. A Glosa comenta as palavras de Mateus, 2: "Esta estrela do nascimento do Senhor etc.", acrescentando três outras diferenças. Primeira, ela diferia em sua origem, já que as outras haviam sido criadas no começo do mundo e esta acabava de ser criada. Segunda, em sua destinação, pois as outras tinham sido feitas para indicar tempos e estações, como está dito no capítulo primeiro do Gênesis, e esta para mostrar o caminho aos magos. Terceira, em sua duração, já que as outras são perpétuas, e esta voltou a seu estado primitivo após cumprir sua missão.

Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram enorme alegria. Notemos que a estrela vista pelos magos é quíntupla, é estrela material, estrela espiritual, estrela intelectual, estrela racional e estrela suprasubstancial. A primeira, material, eles viram no Oriente. A segunda, espiritual, que é a fé, eles viram em seu coração, porque se os raios dessa estrela não tivessem atingido seu coração nunca teriam conseguido ver a primeira estrela. Eles tiveram fé na humanidade do Salvador quando disseram: "Onde está aquele que nasceu?" Tiveram fé em sua dignidade real quando disseram: "Rei dos judeus" Tiveram fé em sua divindade quando disseram: "Viemos adorá-lo". A terceira, a estrela intelectual, que é o anjo, eles viram durante o sono, quando foram avisados por ele para não voltarem para junto de Herodes. Mas, de acordo com certa glosa, não foi um anjo, e sim o próprio Senhor que lhes apareceu. A quarta estrela, racional, fo i a Santa Virgem, que viram no estábulo. A quinta, supra-substancial, foi Cristo, que viram no presépio. A aparição dessas duas últimas estrelas está referida na Escritura quando diz: "Entrando na casa, encontraram o menino com Maria, sua mãe etc." (Mateus 2,1 1)

Cada uma dessas realidades é chamada estrela. A primeira pelos Salmos: "A lua e as estrelas que você criou". A segunda pelo Eclesiastes, 43: "A beleza do Céu, isto é, do homem celeste, é o brilho das estrelas, isto é, das virtudes". A terceira por Baruch, 3: "As estrelas difundiram sua luz e alegraram-se". A quarta pela liturgia: "Salve, estrela do mar". A quinta pelo Apocalipse, último capítulo: "Sou o rebento e o filho de Davi, a estrela brilhante, a estrela da manhã". Ao verem a primeira e a segunda, os magos alegraram-se; ao verem a terceira, rejubilaram-se; ao verem a quarta, rejubilaram-se com grande alegria; ao verem a quinta, rejubilaram- se com enorme alegria. Ou, como diz a Glosa: "Rejubila-se com alegria aquele que se rejubila em Deus, que é a verdadeira alegria", e acrescenta: "grande, porque nada é maior que Ele", e "muito grande, porque podemos nos rejubilar com uma alegria mais ou menos grande" ou então, pelo exagero dessas expressões o evangelista quis mostrar que os homens rejubilam-se mais com as coisas perdidas que voltaram a encontrar do que com as que sempre possuíram.

Depois de terem entrado na humilde morada e encontrado a criança com a mãe, os magos ajoelharam-se e cada um ofereceu presentes: ouro, incenso e mirra. Agostinho exclama sobre isso:

Ó infância extraordinária, à qual os astros estão submetidos. Que grandeza! Que glória imensa n'Aquele diante de cujos cueiros os anjos prosternam-se, os astros assistem, os reis tremem e os sábios põem-se de joelhos! Ó bem-aventurada choupana, trono de Deus fora do Céu, iluminado não por um candeeiro, mas por uma estrela! Ó celeste palácio em que habita não um rei coberto de pedrarias, mas Deus encarnado, que tem por leito delicado uma dura manjedoura, por cobertura dourada um teto de palha escuro, decorado por uma estrela! Quando olho aqueles cueiros fico encantado, e olho para os Céus; quando vejo o presépio com um mendigo mais brilhante que os astros, fico inflamado.

Diz Bernardo: "Que fazem, magos, que fazem, adorando uma criança de peito num vil estábulo? Será ele um Deus? Que fazem ao lhe ofertarem ouro? Será um rei? Onde está, então, seu salão régio, seu trono, sua corte? Será que a corte é o estábulo, o trono a manjedoura, os cortesãos José e Maria? Os magos pareceram insensatos, para serem sábios".

Eis o que diz a esse respeito Hilário no segundo livro de seu Sobre a Tríndade: "Uma virgem pare, mas aquele que é parido vem de Deus. Ao mesmo tempo ouvem-se os vagidos do menino e a louvação dos anjos. Enquanto humano suja os cueiros, enquanto Deus é adorado. A dignidade do poder não fica diminuída, pois a humildade da carne é exaltada. No Cristo menino encontramos humildade e enfermidade, mas também sublimidade e grandeza divinas" Comentando a Epístola aos hebreus, diz Jerônimo: "Olhe o berço de Cristo e verá o Céu; perceberá um menino chorando numa manjedoura, mas ao mesmo tempo ouvirá os cânticos dos anjos. Herodes o persegue, mas os magos o adoram; os fariseus não o conhecem, mas a estrela o proclama; Ele é batizado por um inferior, mas das alturas ressoa a voz de Deus; Ele é imerso na água, mas desce sobre Ele a pomba, isto é, o Espírito Santo sob forma de pomba".

Podemos apontar várias razões para os presentes ofertados pelos magos. Primeira, diz Remígio, era uma tradição antiga que ninguém se aproximava de Deus ou de um rei de mãos vazias. Os persas e os caldeus tinham o costume de oferecer presentes a tais personagens, e os magos, como está dito na HISTÓRIA ESCOLÁSTICA (obra na qual Pedro Comestor (c.1140 - c. 1179) comenta toda a história santa. estabelecendo relações entre ela e a história profana), vinham dos confins da Pérsia e da Caldéia, onde corre o rio de Sabá, por isso seu país era conhecido por Sabéia. Segunda, diz Bernardo: "Eles ofereceram ouro à bem-aventurada Virgem para aliviar sua miséria, incenso para afastar a fe ti dez do estábulo, mirra para fortalecer os membros do menino e para expulsar insetos hediondos" Terceira, porque ouro paga tributos, incenso serve para sacrifícios e mirra para sepultar os mortos. Assim, com esses três presentes reconheceram em Cristo o poder real, a majestade divina e a mortalidade humana. Quarta, porque ouro significa amor, incenso prece, mirra mortificação da carne, e devemos oferecer as três coisas a Cristo. Quinto, porque esses três presentes indicavam três qualidades de Cristo: divindade preciosíssima, alma devotadíssima, carne íntegra e incorruptível.

As oferendas também estavam preditas pelas três coisas guardadas na Arca da Aliança. A vara que floresceu representava a carne de Cristo ressuscitada, conforme está nos Salmos: "Minha carne refloresceu etc.". As tábuas em que estavam gravados os mandamentos significavam a alma em que estão escondidos todos os tesouros da ciência e da sabedoria de Deus. O maná indicava sua divindade, que tem todo sabor e toda suavidade. Por ouro, que é o mais precioso dos metais, entende-se a divindade preciosíssima; por incenso, a alma devotadíssima, porque incenso significa devoção e, de acordo com os Salmos, prece ("Que minha prece se eleve como incenso"); por mirra, que é um preservativo da corrupção, a carne que não foi corrompida.

Avisados em sonho para não voltarem a Herodes, os magos regressaram a seu país por outro caminho. Eis, portanto, a história dos magos: vieram sob a direção da estrela; foram instruídos por homens, melhor dizendo, por profetas; retornaram guiados por um anjo e morreram no Senhor. Seus corpos repousavam em Milão, numa igreja que é agora da Ordem dos Irmãos Pregadores, mas foram depois levados a Colônia. Anteriormente esses corpos tinham sido trasladados para Constantinopla por Helena, mãe de Constantino, depois foram transferidos para Milão pelo santo bispo Eustórgio, por fim o imperador Henrique transportou-os de Milão para Colônia, às margens do Reno, onde são objeto da devoção e da reverência do povo. (Escrevendo cerca de cem anos depois desses fatos, Jacopo engana-se quanto à sua cronologia. Na verdade, as relíquias dos Reis Magos foram transferidas de Milão para Colônia pelo arcebispo Reinaldo de Dassel. chanceler do imperador Frederico Barba Ruiva. em junho e julho de 1164, provavelmente como punição pela insubordinação daquela cidade italiana ao poder imperial)

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Notas e Referências Bibliográficas:

1. Palavra utilizada para referir-se à área do conhecimento que tem os santos e sua veneração por objetos, podendo ser dividida em duas categorias: a hagiografia prática (a produção das narrativas em si) e a hagiografia crítica (o estudo científico da primeira). Cf. DELEHAYE, Hippolyte. Hagiography. In: The Catholic Encyclopedia. Vol. 7. Nova Iorque: Robert Appleton Company, 1910. Disponível em:
 http://www.newadvent.org/cathen/07106b.htm. Acesso em: 27/08/16.
2. O título original do texto é Legendae sanctorum, vulgo historia lombardica dicta, e ficou conhecido como Legenda áurea, isto é, um conjunto de textos de grande valor, como observou o medievalista Hilário Franco Júnior: “(...) (legenda, literalmente "aquilo que deve ser lido", também tinha o sentido de "leitura da vida de santos") de grande valor (daí áurea, "de ouro"). Cf. Apresentação In: VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. 4. re. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 12.
3. Ibidem, p. 11-12.
4. Cf. VORÁGINE, Jacobo de La. El libro de la navidad. Madrid: Ediciones Encuentro, 2003, p. 5.
5. BACHET, Jérôme. Civilização feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 220.
6. VORÁGINE, Op. cit. p. 5.
7. BACHET, Op. cit. p. 221.
8. PAIS, Marco Antonio de Oliveira. O despertar da Europa: a Baixa Idade Média. 13. ed. São Paulo: Atual, 2004, p. 56.
9. Para a história da transladação das relíquias dos três magos da cidade de Milão à cidade de Colônia em meados do século XII, Cf. FÉLIX, Madeleine. De Milão a Colônia. In: PESSOA, J. M.; FÉLIX, M. As Viagens dos Reis Magos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p. 69-110.
10. Para os documentos contendo as concessões de Inocêncio IV, Cf. WEBB, Diana. Pilgrims and Pilgrimage in the Medieval West. Londres: I.B. Tauris, 2001, p. 74-75.
11. Cf. VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. 4. re. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 149-156. O autor também fez pequenas menções aos magos em outros capítulos: batismo dos magos pelo apóstolo Tomé (ibidem p. 88); a manifestação da estrela aos magos, a ida à Jerusalém, a conversa com Herodes e sua jornada de volta por outro caminho (ibidem, p. 121-122); visita de Santa Paula aos locais santos, incluindo o lugar em que os magos adoraram Jesus (ibidem, p. 210); sobre o ouro presenteado pelos magos que teria sido dado aos pobres pela Virgem Maria (ibidem, p. 247).

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